-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-
O mês de novembro esteve bem longe de ser monótono: além das tensões na Bolívia, que conduzem a um irresistível paralelo com o início do regime franquista na Espanha, com as invocações, da parte de quem tomou o poder, à autoridade da Bíblia, a assunção da Fundação Palmares por um negro que nega a crueldade da escravidão e que, se tivesse sequer se aproximado de “As aventuras de Tibicuera”, de Érico Veríssimo, perceberia, surpreso e horrorizado, um autor branco, gaúcho, da década de 40 do século XX, a referir-se elogiosamente a Zumbi dos Palmares, o ataque à exposição, no Legislativo, de desenhos sobre os atentados motivados por pretextos raciais, as queimadas de Alter do Chão/PA, atribuídas, pelo Governo Federal, a Organizações Não Governamentais, segundo ele financiadas por ninguém menos que o ator hollywoodiano Leonardo Di Caprio, o vazamento de óleo cru atingindo as praias do Nordeste, em que uma população desprovida de equipamentos de proteção procura realizar o trabalho que os Poderes Públicos teriam o dever constitucional de realizar, mantêm em perplexidade quantos não tenham vocação – valha-me Eugene Ionesco – para “virar rinoceronte”...
O caráter tragicômico do “Festival de Besteiras” se manifesta em toda a sua majestade, e torna difícil, como dito em outra ocasião, identificar onde está a manobra diversificatória e onde está o perigo real [cf. meu “Guerrilheiros apocalípticos”, na íntegra aqui]. Mas, dentre tantos, vamos escolher um, que remonta a uma das mais dolorosas experiências da história brasileira do século XX. >>>
>>> O Ministro da Economia acaba de ilustrar o que no volume 66 da Revista Brasileira de Estudos Políticos (jan 1988) escreveu meu Professor de Filosofia do Direito e Relações Internacionais, Arthur José Almeida Diniz: para implementar-se um regime econômico em que o mercado seja a medida de todas as coisas, só com a eliminação de toda oposição respeitável e instalação de um regime político autoritário. No texto, intitulado “Por uma nova Comunidade internacional”, elenca cada uma das providências voltadas a remover os obstáculos à realização da justiça pelo movimento espontâneo da oferta e da procura: o amordaçamento de qualquer oposição respeitável, a repressão à atuação sindical, a censura à imprensa (embora garantidos os recursos financeiros das empresas jornalísticas amigas).
Como nos tempos atuais parece que a leitura da mensagem depende da apresentação das credenciais ideológicas do emissor, devo dizer que Arthur Diniz, um dos mais brilhantes professores que tive na Universidade Federal de Minas Gerais, há tempos aposentado, está bem longe, a despeito das crenças profundas do Ministro da Educação, de poder ser chamado de “marxista”: muito firme na sua fé religiosa (kardecista), sob o ponto de vista político sempre militou pelo retorno da monarquia.
Vencida a preliminar, recordemos que disse Sua Excelência, o Ministro (ou seria “Sua Alteza”? Tanta coisa está a mudar, hoje, no âmbito vocabular...), que, no caso de “a esquerda” – o inimigo de sempre – conclamar manifestações contra as medidas referentes ao sacrifício-que-todas-as-pessoas-honestas-estão-dispostas-a-fazer pela-Pátria”: “não se assustem se alguém pedir o AI-5” [aqui, acessado em 28 nov 2019].
Ao lado da pressuposição de disposição da sociedade ao sacrifício – contrária ao que, já no século XVII, tanto Hobbes quanto Espinosa, um absolutista e um liberal, sustentavam, quanto a não ser o ente humano naturalmente voltado a fazer concessões, a abrir mão do que lhe permite a afirmação da própria personalidade sobre o mundo - em defesa do fundamentalismo de mercado, a que hoje se denomina “neoliberalismo”, veio a negação do liberalismo político enquanto legado iluminista. >>>
>>> O Ato Institucional n. 5, de 1968 (AI-5), a que se refere o Ministro da Economia, foi a quinta manifestação, no Brasil, de um verdadeiro poder constituinte paralelo à Constituição de 1967, e "suspendeu", no seu artigo 10, o cabimento do habeas corpus em relação aos crimes contra a segurança nacional e a economia popular, excluiu as sanções aplicadas com base nele de qualquer tipo de apreciação judicial no seu artigo 11, e foi o principal instrumento em que se basearam os que sustentavam que tudo seria permitido contra o que quer que se parecesse com uma contestação a um regime que tinha recebido a gloriosa missão de expulsar do país as células da subversão vermelha e da corrupção, em defesa da família, da tradição, da moral e dos bons costumes. Cristãos devotos como Edgar de Godoi da Mata-Machado, liberais admiradores do modo de vida dos EUA como Victor Nunes Leal, heróis da II Guerra Mundial como Ruy Moreira Lima estiveram dentre os atingidos, apenas para recordar aos que recorrentemente lançam mão do pseudo-argumento de que bastava-não-ser-comuna-nem-desordeiro-que-não-tinha-problema.
Metáforas as mais variadas já desfilaram: o touro desejoso de que haja mais touradas em que é o centro das atenções, o boi clamando pelo churrasco com que confraternizam os humanos, o peru ansiando pela decapitação que constitui passo necessário a que se converta na estrela principal da ceia de Natal. Todas elas traduzindo, sem exceção, a atitude anormal, do regozijo pelo próprio infortúnio por uma ilusão de triunfo. E se esta atitude se mostra anormal, quando espontânea, com o retorno de um instrumento como o AI-5 ela se converteria, praticamente, em um dever. Vejamos por quê.
Propostas de emendas constitucionais voltadas a mitigar, quando não destruir, os direitos sociais, ao argumento de que estes prejudicam o mercado, uma vez que se convertam em direito positivo vigente, até que seja pronunciada a presença, nelas, de uma eventual agressão a algum dos incisos do § 4º do artigo 60 da Constituição, implicarão reais perdas para a população que não tem o comando dos meios de produção, no sentido de se lhes poder exigir, até o exaurimento das energias, que dediquem toda a sua existência a quem lhes faz o favor de empregar. Um instrumento como este inibiria quaisquer manifestações de descontentes em perder esses direitos, pintados como “privilégios”, enquanto estivessem elas em tramitação.
“Privilégios”, estes, que não existiam quando o Papa Leão XIII recomendou seu surgimento, em 1891, na famosa Encíclica “Rerum Novarum”, que não foi desautorizada nem por Pio XI, nem por Pio XII, nem por João Paulo II, nem por Bento XVI, para referir os Chefes da Igreja Católica considerados respeitáveis no pensamento conservador brasileiro em geral (João XXIII, Paulo VI, em menor medida, e Francisco têm recebido – em especial este último – as suspeitas de “vermelhismo”). “Privilégios” que não existiam quando Rui Barbosa, durante a Campanha Presidencial de 1919, identificou a insuficiência do tratamento puramente contratual das relações de trabalho, como se adotava então, para assegurar a legitimidade do regime republicano. >>>
>>> Da inibição a manifestações de descontentamento, surgiria o substrato para o Governo dizer que “a população ordeira brasileira apoia e se dispõe ao sacrifício necessário para fazer do país uma grande nação e mostrar que são recompensadas as forças vivas que trazem o progresso”. E, convertidas que fossem tais propostas de emenda constitucional em Emendas, somente restaria o respectivo controle judicial de constitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal, em sua composição anterior a 2003, majoritariamente composta por Ministros nomeados pelos Governos Geisel, Figueiredo e Sarney, ao julgar o mérito da ação direta de inconstitucionalidade 1946, relatada pelo Min. Sydney Sanches, acórdão publicado no Diário de Justiça da União do dia 16 de maio de 2003, entendeu que os direitos sociais poderiam ser considerados protegidos contra emendas constitucionais, desde que passíveis de fruição individual e, por esta razão, preservou a licença-gestante dos efeitos da Emenda Constitucional n. 20, de 1998. Entretanto, considerando que o controle de constitucionalidade de emendas constitucionais se faz com muita parcimônia, já que elas alteram o próprio parâmetro do controle – a Constituição -, mesmo este entendimento, proveniente de uma composição do Supremo Tribunal Federal cujo perfil mais conservador era conhecido, não traduziria nenhuma garantia de que a atual composição iria placitá-lo, de que ela não daria à expressão “direitos e garantias individuais” no inciso IV do § 4º do artigo 60 da Constituição brasileira uma interpretação mais restritiva.
O que se quer dizer com tudo isto? Simplesmente, que, ao cogitar da possibilidade do retorno do AI 5, com o apoio de outras autoridades nacionais, inclusive o Presidente da República, o Ministro torna a questão da “legitimidade do poder” algo ultrapassado por uma concepção econômica cujas garantias estariam tão-somente no uso da força nua, naquela falácia não formal denominada “argumentum ad baculum”, e, pois, vem a apresentar uma concepção de verdadeira onipotência de quantos se engajem no propósito que está a defender. O problema deste pressuposto é que a disposição para combater não é eterna e a munição acaba...Não é casual que tenha provocado a fala acerca da possibilidade do retorno do AI 5, para um mercado mais acostumado ao pragmatismo do que ao sectarismo, alguns dos mais temidos efeitos, como a alta do dólar em relação ao real, como informa Miriam Leitão, insuspeita de adversidade ao capital [aqui , acessado em 1 dez 2019].
E vem outra pergunta: “Rerum Novarum” (1891), discurso de Rui Barbosa sobre A questão social e política no Brasil (20.3.1919). Tendo em vista o teor desses documentos, como devem os "verdadeiros patriotas" considerá-los, já que se reportavam precisamente a relações de trabalho e previdência semelhantes às que hoje os gênios indicam ser o caminho infalível do sucesso econômico? São falsificações ou expressões de traidores a serviço do comunismo? E se não forem falsificações? Serão erros, mesmo de quem, de acordo com o dogma católico, tem a prerrogativa da infalibilidade, no caso, o Papa? E se o sucesso anunciado não vier, mesmo que se adote – a despeito da reação negativa da própria opinião pública internacional – a repressão a qualquer tipo de questionamento dessa política econômica que se pretende implementar? Ora, os culpados terão sido os que “torceram contra”, do mesmo modo que, na Roma de Nero, os culpados pelo incêndio que sobre ela se abateu só poderiam ser os integrantes daquela seita excêntrica surgida no Oriente Médio e que não aceitava os deuses romanos e, em especial, rejeitava a divindade do César. <<<
RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP)
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