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RETRATOS DO INCOMPREENSÍVEL

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-MÁRCIA SEMER-



Setembro de 2019. Brasil. Como nunca antes na história, autoridades nativas têm nos bombardeado com falas, atos e gestos estapafúrdios que ora fazem corar de vergonha ou de raiva, ora fazem rir do ridículo, ora provocam tudo isso junto e misturado.


Esse bombardeio tem acontecido em escalada ascendente, com frequência crescente e em tom cada vez mais agressivo. No começo do ano os surtos de estupidez ocorriam com alguma parcimônia, espaçados no tempo e mais restritos no conteúdo. Agora, vigora uma cretinice desabrida. Os espetáculos desnorteadores são diários, numa inflação de absurdos sem precedentes.


Vale tudo nesse cenário surreal. Cenas explícitas de nonsense passaram a compor o nosso cotidiano. Protagonizadas por Presidente, Ministros, Governadores, Parlamentares, todos os segmentos políticos têm seus representantes nesse circo de horrores. Empresários, digital influencers, gurus em geral, dentre vários outros atores sociais, também compõem o elenco distópico da trama à qual estamos enredados.


Olhando para tudo isso, o que mais impressiona é que não importa o grau de insanidades realizadas ou reveladas – sim, porque temos também lido semanalmente o que uns e outros agentes de Estado fizeram no verão passado e a dose ou overdose de loucuras é impressionante-, nada acontece.

Há um imobilismo, uma paralisia, uma letargia – uma cumplicidade no caso de alguns- estonteantes.


Setembro de 2019, Brasília. Votação da Reforma da Previdência na CCJ - Comissão de Constituição e Justiça- do Senado. A canícula é inclemente, o ar seco e a terra árida. Mas se o clima é desértico, ele está razoavelmente conforme a normalidade da época. O que impressiona é o Congresso.

Entrar no Congresso brasileiro é uma tarefa cada vez mais desafiadora. Não basta se identificar, tem que informar pra onde se vai. Cada entrada admite circulação restrita. Para mudar de setor tem que se identificar novamente. Mesmo no setor para o qual se é admitido pode acontecer – e acontece com frequência- não ser possível acessar um corredor, uma sala. Barreiras de policiais até armados são vistos no interior do Congresso limitando passagens.


Votação da Reforma da Previdência na CCJ do Senado. É proibido entrar no Plenário da CCJ para acompanhar as discussões e votação. É proibido entrar no corredor do Plenário da CCJ. Precisa de autorização mais que especial, especialíssima, que só um determinado crachá – não um crachá qualquer- concede.

O povo é proibido de acompanhar. Mas que povo? Onde está a multidão que provocou toda a malha de restrições de acesso?


A enxurrada de barreiras contrasta com a escassez de povo. Na escuridão e no abafo do Túnel do Tempo- largo corredor que dá acesso ao corredor das Comissões do Senado- jornalistas. Povo? Não enchia as duas mãos o número de interessados que aguardavam a passagem dos Senadores na esperança de uma última palavra antes do início da sessão. No começo da manhã não enchia uma mão.


Há um imobilismo, uma paralisia, uma letargia – uma cumplicidade no caso de alguns- estonteantes.


Setembro de 2019. São Paulo. A Rua Maria Paula fica no centro da cidade. É uma rua importante. Abriga a Câmara Municipal, a sede da seccional da OAB/SP, repartições públicas, sindicatos, escritórios, a Federação Espírita. Residência tem também. Parte delas de gente que vive na rua.


Os habitantes de rua na Maria Paula são na maioria jovens. Têm nome e o endereço é, por assim dizer, “fixo”. Estão sempre ali. Conhecem a gente, chamam pelo nome e com sorriso no rosto sempre agradecem a ajuda. Mesmo quando a gente não pode ajudar são gentis.


Nunca os vi – esses moradores de endereço “fixo”- destratarem ninguém. Nem vi ou ouvi dizer que cometeram algum ato ilícito. Pedem ajuda pra comer, pra comprar sabão pra lavar a roupa, pra pagar pra tomar banho e pra fazer a barba, pra ir visitar a família.

Alguns são impressionantemente otimistas. Outros têm altos e baixos. Há também, óbvio, os deprimidos.

Vejo as pessoas ajudarem. Nunca vi a Prefeitura, por seus agentes, passar pra conversar, propor uma atividade lúdica, de capacitação, fazer uma aproximação com os moradores “fixos” da rua Maria Paula. Os moradores “fixos” da rua Maria Paula são vítimas de muita coisa. Como de resto, quanto a eles...


Há um imobilismo, uma paralisia, uma letargia – uma cumplicidade no caso de alguns- estonteantes.

 

MÁRCIA SEMER - Procuradora do Estado de São Paulo Mestre e doutoranda em Direito Público da USP. Presidente do Sindiproesp. Escreve todo dia 10 de cada mês.

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