-RUI VIANNA-
Esta noite eu estava em uma festa. Festa da pesada, até o Stones estavam lá quebrando tudo. Mas não musicalmente, eles estavam quebrando literalmente tudo, atirando os destroços pela janela, junto com restos de comida, até que a polícia judiciária chegou, emparedando todos os rebeldes. Mas emparedando mesmo, a imagem ficou forte na memória, uma janela com uma parede por trás, nessa parede outra janela, com outra parede por trás.
Neste momento, toca o telefone, insistentemente. Abro um olho, que arde, ainda está escuro, busco a direção da porta do meu quarto, no entanto olho para a janela, com uma luminosidade fraca e difusa (meu quarto é assim, bem escuro, com uma janela pequena). E o telefone continua tocando.
Agora já com os dois olhos abertos e ardendo, decido que não vou atender. É o telefone fixo, se não for telemarketing é alguma ligação de bandidos pé de chinelo, falando que sequestraram minha filha, ou algo do gênero. Deixo tocar (você deve estar se perguntando por que tenho telefone fixo ainda. Boa pergunta. Só por exigência da operadora, senão perco vantagens do pacote de dados e tv a cabo. Fecho).
O diabo é que o telefone volta a tocar, depois de ter parado por um breve instante. Seria um pesadelo? Não, estou definitivamente acordado, é fato, e não consigo ignorar telefones que tocam. Sei, um defeito incorrigível meu.
Alô (voz do outro lado).
Não digo nada. Um macete que descobri. Em ligações de telemarketing, quando não falamos nada, eles desligam.
Alô? (de novo)
Respondo, voz gutural e invocada. Alô.
Alô é da casa da senhora Ali Ferreira?
Não, quase mandando uma torrente de impropérios e palavras de baixo calão, e talvez algumas de médio calão. Mas não. Silencio, atônito.
Não é da casa da paciente Ali Ferreira?
Não.
Ah, desculpe. Desliga.
Olho para o relógio do fogão, estou na cozinha, são 4.24 . Estou em pé no meio da cozinha, frio de lascar, tentando imaginar quem será a paciente Ali Ferrreira, se o nome ela seria com Al”i” ou com Al”y”, e o que estaria acontecendo do outro lado da linha. Juntando o paciente com 4.24 da madrugada, mesmo zonzo de sono consegui concluir que coisa boa não seria.
Volto para a cama, encosto a cabeça no travesseiro, esperando que o sono volte após esse verdadeiro atentado sofrido, coração ainda disparado e um frio intenso. Conforme vou relaxando, encontrando o lugar mais quentinho da cama, ressoa na minha cabeça uma antiga musiquinha: Alô alô responde! Responde se gostas mesmo de mim de verdade! Alô alô, responde,com toda sinceridade. (Carmen Miranda & Mário Reis ouça aqui)
Acordo hoje de manhã (a melodia ainda lá, persistente), com aquela sensação de pesadelo, não tenho certeza do que aconteceu, do que foi projetado pelo meu subconsciente, a necessidade de ter informações sobre a paciente me incomodando. Aí começo a me recordar de ontem, dos vários acontecimentos e perdas que todos sofremos.
Perdemos Paulo Henrique Amorim, o qual recebeu, aqui na revista PUB, entre outras, uma bela homenagem da colega Adriana Abelhão, e que todos temos certeza fará muita falta nesse momento tenebroso e específico que vivemos. Se foi também Chico de Oliveira, proeminente figura tanto da sociologia como da política, deixando a todos nós mais desamparados um pouco.
Perdemos também mais um tanto de nossa dignidade, ao assistirmos à dilapidação furiosa da Previdência Social, promovida por um congresso composto de urubus machos sedentos da carniça de um povo moribundo, todos machos e vestidos de preto, como que, paradoxalmente, de luto pelo passamento de mais essa instituição.
Bandeirolas do braziu enfeitavam esse cenário tétrico, em mais uma demonstração de que a novirrealidade chegou para ficar, transformando paz em guerra, de fato. Análises e mais análises nos fazem ver o tamanho do buraco, o inevitável pela frente como uma parede.
E nós, onde estamos no meio desse pesadelo? Onde a reação? Até quando assistiremos inertes a essa avalanche? Com que armas reagiremos? Resta-nos ainda qualquer dignidade ou esperança?
Acordei do pesadelo e me sinto cada vez mais mergulhado nele, mesmo tendo vivido todo o período da ditadura militar, chamada movimento por pusilânime ministro, sem perspectiva de acordar. O pesadelo é um lamaçal, afunda nosso corpo que tenta inutilmente resistir, tentando se mover e afundando cada vez mais.
O que teria acontecido com a senhora Ali Ferreira?
“Responde, se gostas mesmo de mim de verdade!”
Rui Vianna escreve todos os dias 11 e 29 de cada mês, é torcedor do Santos FC e aposentado.
Pesadelo, Rui. No fim deu a deixa para a próxima coluna. Que teria sido de Ali Ferreira? Ali seria mesmo uma senhora? Há homens com esse nome.
Guilherme, grato pela leitura. Quem dera nossa realidade tivesse algo do refinamento estético de Poe! Passamos tão longe disso!
Parabéns, Rui! O pesadelo parece não terminar jamais. Acho que não são só os Stones, depois da votação de ontem, todos nos sentimos emparedados, como no "Barril de Amontillado", de Poe. Brasília foi construída em cima de alguma caveira de burro.