top of page

LAICIDADE ESTATAL E A GARANTIA DA LIBERDADE RELIGIOSA

-MÁRCIA SEMER-


A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garante a liberdade religiosa como direito fundamental e promulga a laicidade estatal na organização político-administrativa do Estado.


Já no artigo 5º, referente aos direitos e garantias fundamentais, encontramos três disposições relativas à crença, a saber, os incisos VI, VII e VIII.

O inciso VI trata de garantir a inviolabilidade de crença e a liberdade de culto. Dispõe o inciso VI que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

O inciso VII garante a assistência religiosa em entidades civis e militares de internação coletiva. Presídios e quartéis são exemplos de instituições de internação coletiva em que a assistência religiosa é um direito do cidadão.


O inciso VIII, por fim, veda a discriminação derivada de motivação religiosa ao dispor textualmente que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.


A laicidade do Estado vem tratada no artigo 19 da Constituição e impõe expressa vedação a qualquer tipo de patrocínio estatal de atividade religiosa. É o teor do artigo 19: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I. estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”


Mas se o tema está bem delineado do ponto de vista formal, legal, constitucional, as questões tanto da liberdade religiosa quanto da laicidade do Estado têm sofrido enfrentamentos no Brasil.


No que toca à liberdade religiosa, são assustadoras as notícias recentes de ataques a espaços de culto de religiões de matriz africana. Terreiros situados no Estado do Rio de Janeiro têm sido, aparentemente, o espaço preferencial dos ataques, mas o ambiente de ódio político e desprezo pelo saber ou elegia da ignorância que tomou conta do país nos últimos anos parece gerar licença para o extravasamento violento também dos preconceitos. O preconceito religioso é aguçado por esse ambiente insalubre e integra a agenda dos alvos preferenciais.


São de 2019 notícias como “Terreiro de Candomblé é depredado em Nova Iguaçu e religiosos são expulsos” (G1- Globo); Traficantes de Jesus: polícia e MPF miram intolerância religiosa no rio (UOL- Folha); Traficantes evangélicos causam terror a religiões africanas (Portal Terra); Ataque a terreiros é terrorismo (O Globo).


Evidentemente a discriminação ou o preconceito religioso não são novidades no Brasil ou no mundo. Não obstante, estudos têm apontado o crescimento de ações violentas em nosso país.

Sobre o tema, o Ministério Público Federal divulgou no segundo semestre do ano passado relatório em que trata da violência religiosa. Nele há a constatação de efetivo aumento dos casos de intolerância religiosa no Brasil, com crescimento da violência contra religiões de matrizes afro-brasileiras.


Nas conclusões a relatoria do MPF fala de repetidos casos de apedrejamentos, depredações, incêndios criminosos, atentados contra a vida e o sagrado; fala também que o crescimento dos casos de violência tem por paralelo a proliferação de discursos de ódio religioso, derivado de proselitismo destrutivo levado a efeito por alguns segmentos religiosos cuja sistemática fundamentalista visa varrer comunidades religiosas de matrizes afro-brasileiras do mapa.

Ainda do campo do fomento à intolerância religiosa, teve repercussão, faz alguns anos, a ação de um bispo evangélico que, em canal aberto de televisão, chutou uma santa católica, num gesto infeliz de intolerância. A atitude ganhou as manchetes da época, e, diante a repercussão negativa, a iniciativa não ensejou novas reproduções na mídia.


Mas se o respeito pela crença alheia vem sofrendo abalos violentos nos últimos tempos, a laicidade do Estado está sendo posta à prova com alguma intensidade.


Foto - STF

A questão da laicidade do Estado nunca foi um assunto muito bem resolvido no Brasil. A presença de crucifixos em tribunais, salas de audiência, por exemplo, ofende frontalmente o mandamento constitucional, mas contou e conta com a tolerância generalizada. O próprio plenário do STF tem um crucifixo na parede. A Constituição, aliás, em seu preâmbulo, é promulgada “sob a proteção de Deus”.


Questões como a descriminalização do aborto também sofrem importante influência de segmentos religiosos e põem em xeque o tema da laicidade do Estado.


Não obstante esses elementos de enfrentamento do primado do Estado laico, o tema da laicidade é hoje valor em disputa aberta, com setores religiosos buscando espaços no Estado de forma organizada, vale dizer, buscando espaços no Estado enquanto segmentos religiosos.


Assim, nas casas legislativas existem bancadas evangélicas, o Presidente da República fala em nomear para o STF ministro que seja evangélico, e até as eleições para os Conselhos Tutelares do último final de semana (06.10.2019) ganharam visibilidade em razão das notícias de que os evangélicos haviam se organizado para participar do pleito e formar uma bancada evangélica nos referidos Conselhos. E se hoje a ofensiva é dos neopentecostais, na década de 80 o questionamento que existiu na sociedade disse respeito à participação de padres nas eleições nacionais.


O crescimento da influência religiosa na política é um fenômeno inequivocamente crescente no Brasil. O movimento preocupa pelos possíveis impactos na garantia da laicidade do Estado e pelo comprometimento possível na tomada de decisões, no uso dos recursos e patrimônio públicos e na realização de políticas públicas voltadas à promoção de uma visão particular de mundo.


O que a laicidade impõe ao Estado é a atuação livre das amarras religiosas e subordinada, exclusivamente, ao primado democrático. Laicidade e democracia são conceitos complementares e indissociáveis em nosso desenho constitucional. Tergiversar com a laicidade é fragilizar a democracia.


Nessa perspectiva de proteção da democracia compete, em última instância, às Funções Essenciais à Justiça e ao Poder Judiciário zelar pela laicidade do Estado. A Constituição de 1988 fez do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Defensoria Pública e da Advocacia instrumentos importantes de atuação contramajoritária, exatamente para defesa e salvaguarda da democracia. Daí que integra o cardápio da atuação de todos esses entes tanto a garantia da liberdade de crença quanto a garantia da laicidade do Estado.

Não é incomum a atuação desse segmento em defesa dos valores constitucionais da liberdade de crença e da laicidade do Estado. O STF, provocado pelo Ministério Público Federal, não faz muito decidiu sobre o ensino confessional em escola pública e, a nosso juízo, decidiu mal.


É do Tribunal de Justiça de São Paulo decisão relativamente recente que, em sede de apelação tirada de ação civil pública, determinou ao Município de Praia Grande a retirada de inscrições religiosas inseridas em monumento na Praça da Bíblia, transformando o local em espaço laico. No acórdão pode se ler que “Não se questione que o Estado laico não seja um Estado que deva reprimir as manifestações religiosas; apenas não deve subsidiá-las, posto que, se assim o fizesse, deveria fazer a todas as religiões, uma vez que é constitucionalmente proibida a escolha de uma só. O pluralismo e a liberdade de crença, portanto, nada tem de inconciliáveis."

No passado, coube a Procurador do Estado do Rio de Janeiro questionar a utilização de terreno público para a construção do Cristo Redentor, escorado na laicidade do Estado.

Como se sabe, o questionamento não obteve acolhida e a imagem compõe um dos cartões postais do mundo.


Referências





Apelação n. 1004126-47.2016.8.26.0477. Apelante: Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos. Apelada: Prefeitura Municipal de Praia Grande. Relator: Des. Marcelo Semer.


 

MÁRCIA SEMER - Procuradora do Estado de São Paulo Mestre e doutoranda em Direito Público da USP. Presidente do Sindiproesp.

193 visualizações0 comentário

コメント


bottom of page