-MARIE MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA-
O filme “Parasita”, do diretor sul coreano Bong Joon-Ho, joga na cara do expectador a cruel diferença entre as camadas pobres da população da Coréia do Sul e os ricos daquele país, que ocupa o 11º lugar no “ranking” da economia no mundo. As diferenças sociais, como abismos, são escancaradas e essa imagem serve para refletir a situação em grande parte dos países. O lado de cima mantém-se, por ignorância ou por falta de empatia, totalmente alheio aos conflitos e à realidade do lado de baixo, embora esteja totalmente dependente da mão de obra dos mais pobres, com suas babás, faxineiras, empregadas e motoristas.
As cenas evidenciam a diferença de espaço físico e o roteiro apresenta a dificuldade de ascensão social, a partir das limitações econômicas para a educação das camadas mais empobrecidas da sociedade. Mostra, também, as incertezas do resultado dos pequenos empreendimentos, que variam em função do jogo da economia, resultando em perda do capital investido e deixando a família inteira, protagonistas no filme, sem qualquer fonte de renda. Daí, a necessidade de aproveitar qualquer possibilidade que aparecer. >>>
>>> A simbologia do espaço, caracterizando a diferença social, chamou minha atenção. Ele reflete bem a realidade e a qualidade de vida das pessoas na sociedade.
Tomando como exemplo a cidade de São Paulo, megalópole, com extensão de quase 60 quilômetros de uma ponta para a outra, encontramos nela várias “sub-cidades”, onde se amontoam construções coladas umas nas outras, sem espaço externo individual, o que exclui a possibilidade de privacidade das famílias que aí vivem. São as favelas, atualmente chamadas por “comunidades”, linguagem mais respeitosa, embora eufemística, insuficiente para promover melhoria na condição de vida da sua população.
Cada comunidade tem uma história de sua formação. A de Paraisópolis nasceu com a ocupação de espaços não comercializados de loteamentos no Morumbi, próximos ao Estádio de Futebol, em cuja construção trabalharam os primeiros moradores, assim como na construção das mansões próximas. A esse agrupamento de moradias foram levantadas outras, pela premência da vida e para preencher a falta de políticas públicas de habitação dos governos.
Para melhor aproveitar a disponibilidade de terreno, as casas foram se espremendo, sobrando pouco espaço para as ruas, numa imagem semelhante a um trabalho de “patchwork” estilizado. Paraisópolis ocupa uma área aproximada de um milhão de metros quadrados, com 21 mil moradias e abrigando perto de 110 mil pessoas. Pelo número de habitantes constituiria uma cidade de tamanho médio, embora lhe faltem os requisitos necessários para poder ser considerada uma “urbe”.
E essa carência de serviços públicos essenciais, resultado da falta de aplicação de políticas públicas, dá o tom de vida desprovida de qualidade de habitabilidade que dificulta a vida de seus moradores. Entre as carências, a falta de espaço individual e público de lazer. As pessoas se organizam como podem. O estigma de morador de comunidade é empecilho até para a obtenção de emprego, de recebimento de correspondência e de conexão com a vizinhança, onde existem prédios de luxo com moradores de classe média alta. No entanto, a maior parte dos habitantes da comunidade é trabalhadora e leva uma vida pacata.
Cerca de 30% dos moradores de Paraisópolis é composto por jovens entre 15 e 28 anos, o que constitui, grosso modo, uma população de 33 mil, entre adolescentes e jovens. Conseguir uma forma de lazer e divertimento, com pouco gasto, é um desafio grande.
Penso no espaço físico e no espaço social. Ambos os espaços estão limitados para essa juventude, considerando as dificuldades de falta de dinheiro para seu lazer. O espaço social seria a possibilidade de ascensão, de amplitude de oportunidades.
A questão do espaço evidenciou sua importância no fato absurdamente triste que ocorreu na madrugada do dia 1º de dezembro. Ocorria o “Baile da 17”, um “pancadão” de rua, com a característica de som em volume muito alto, com música “funk”, reunindo quase 5 mil pessoas, espalhadas por quatro ruas. Para esses bailes acorrem jovens também de outras partes da cidade.
O fenômeno desses “pancadões de rua” já fora objeto de discussão nos últimos anos pela prefeitura e pelo governo do Estado de São Paulo. Existem centenas deles em bairros pobres e com poucas opções de lazer para os jovens. O som muito alto incomoda muitos moradores da própria comunidade e da vizinhança. No entanto, é a forma de diversão possível.
Também se criticam os “pancadões” pelo uso de drogas por muitos participantes. No entanto, isto ocorre também em volta das faculdades, e ninguém critica, ninguém fala nada. Ele não é criminalizado. As ações do governo em criminalizar esses bailes das regiões da periferia tem um componente grave de hipocrisia, de preconceito e de segregação da juventude mais pobre. >>>
>>> Policiais do 16º Batalhão de Polícia Militar invadiram esse baile funk, segundo alegaram, em busca de dois homens em moto que teriam atirado contra os agentes. Os policiais chegaram ao evento atirando balas de borracha e bombas de gás, causando enorme tumulto entre os frequentadores. No corre-corre que se seguiu, dezenas foram pisoteadas e ao menos nove pessoas morreram. Um determinado grupo tentou se refugiar numa viela, que tinha a saída bloqueada por uma porta trancada, cuja chave estava na posse de moradores locais.
As cenas gravadas por celulares mostraram atos de violência da polícia militar, agredindo as pessoas encurraladas na viela sem saída com cassetetes e jogando gás lacrimogêneo, e conforme testemunhas ouvidas por repórteres no dia seguinte.
As pessoas que morreram não eram moradoras da comunidade e, assim, não conheciam as alternativas possíveis para fugir da ação da polícia e, infelizmente, acorreram para essa viela. A truculência da polícia está evidenciada pelas imagens que foram veiculadas e que estão sendo submetidas à análise para constatar a data de sua gravação. Qual será o resultado desta investigação? Será outro "caso Marielle", que não teve solução ainda?
O povo precisa de ação inteligente, e não truculenta, da Polícia Militar.
E necessita de governantes que entendam o que existe, o que sente e como vive a população mais pobre e trabalhem para melhorar as condições de sua vida e não fiquem pensando apenas nas eleições futuras e outras mais distantes ainda. >>>
>>> O distanciamento social dos governantes impede ter uma visão real da vida das pessoas mais necessitadas da ação do governo, inclusive nessas comunidades. O excessivo conforto dos carros oficiais e dos helicópteros, e mais outras mordomias que deveriam ser dispensadas numa democracia verdadeira, torna invisíveis situações de dificuldade pelas quais a grande maioria do povo passa.
Quem sabe, algum dia o espaço social, como um todo, se transforme numa verdadeira comunhão de pessoas, uma comunidade, onde o espaço físico de vivência não seja característica de pobreza e causador de preconceito e de discriminação. Sonhar, ainda é possível... <<<
MARIE MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA é Membro do IBAP, advogada, mestre em Direito do Estado – Direito Constitucional (PUC) e em Ciências (Patologia Social - FESPSP).
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