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SOBRE GATOS, RÁDIOS, CORONAVÍRUS E IMBECIS

-SEBASTIÃO VILELA STAUT JUNIOR-


Observo o gato, mais propriamente a gata, relaxada, refestelada na pedra mineira aquecida pelo sol da tarde. Meio ocultada pelo vaso de “comigo ninguém pode” ronrona ao perceber minha aproximação, se alonga e logo volta à posição original, carpe diem.

Chama-se Amélie, tem 9 anos, é bege malhada, muito grande e bonita. Mantém seu comportamento satisfeito, simpático, sem se importar com o que estou a escutar nos noticiários do rádio:


— OMS acaba de reconhecer pandemia de coronavírus, toda a Itália está em regime de quarentena, cancelados torneios, exposições, encontros. Sistema de atendimento à saúde em risco de colapso.


— estima-se crescimento exponencial do número de infectados, índices alarmantes de disseminação da doença, inclusive no Brasil, onde já se prevê enormes problemas no atendimento aos pacientes.


— a Bolsa de Valores de São Paulo, B3, cai mais de 10% pela terceira vez, acionado o “circuit braker”. A Petrobrás perde em alguns minutos dezenas de bilhões de reais em valor acionário.


— real atinge seu menor nominal histórico em relação ao dólar. Estima-se que serão necessários cinco reais para comprar um dólar, seguidas as cotações comerciais.


— mercados mundiais “derretendo”

Ao meu lado esquerdo, enquanto escrevo, posso observar o Namo. Outro gato, dormindo feliz, com a fresta de luz que escapa da porta balcão a cortar sua barriga branca. Ele transborda a paz de quem já passou por muita coisa boa e ruim nos seus longos e aproximados quinze anos de vida e aventuras.


O rádio, por sua vez, não para:


— presidente do Brasil reafirma no perfil oficial do twitter a importância da “manifestação do dia 15 de apoio ao governo”.


— o mesmo presidente afirma em Miami que coronavírus é falácia, exagero “dessa grande imprensa mundial aí”.


— afirma ainda que ganhou as eleições em primeiro turno e que houve fraude.

Passa por cima do notebook em que escrevo a Felícia, a gata cinza, arisca como sempre.


Ao passar, digitou algumas letras que apaguei.

O rádio não dá sossego:


— Estima-se que 60% dos alemães podem ser infectados pelo coronavírus.


— Bolsa de São Paulo reabre e cai mais de 12%, preço do dólar volta a subir.

Aff! Levanto vou tomar um café. No caminho até a cozinha quase tropeço na Brigitte, a gata peluda que gosta de enroscar-se nas pernas das gentes. Impreco: Qualquer dia desses você quebra o tornozelo de alguém, ou vai ter seu rabo amassado! Ela não se importa, não dá a mínima, continua a enroscar-se.

Fico imaginando que este artigo deve ser publicado, se é fato que a bondade do conselho editorial vá continuar, só lá pelo dia 20, e que hoje ainda é dia 11. O que terá acontecido até lá? Estará já sem sentido, anacrônico, atropelado pelos fatos?

Sinceramente não sei. Artigos desta natureza são assim mesmo, despretensiosos, efêmeros. As crônicas, por sinal, estão desaparecendo.

Seja como for arrisco dizer que, até o dia 20, ainda teremos gatos, rádios, coronavírus e imbecis. Esses dois últimos poderiam não estar, mas seria pedir muito...

 

SEBASTIÃO VILELA STAUT JUNIOR é advogado, Procurador do Estado de São Paulo aposentado, professor e membro do IBAP


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