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A padronização alimentar e a cultura alimentar diversificada

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    Revista Pub
  • 13 de ago.
  • 6 min de leitura

-M. Madeleine Hutyra de Paula Lima-

 

Existe um histórico do conflito entre duas lógicas, dois sistemas de apropriação social da natureza em que há desigualdade no modo de regular, limitando a circulação de alimentos, restringindo as escolhas e padronizando o sabor dos alimentos e o gosto das pessoas em função de interesses econômicos.


O Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional apresentou dois episódios como exemplos de uma forte contradição entre o modelo hegemônico do sistema alimentar moderno ou globalizado, em que o alimento é considerado mercadoria (commodity) na produção, distribuição e no consumo, e entre o modelo de resistência e de luta social no campo para produzir alimentos mais naturais e valorizar a cultura alimentar.[i] 


Embora distintas no tempo e no espaço, as duas situações estão interligadas por motivações similares traduzindo interesses econômicos de corporações internacionais ligadas ao sistema alimentar globalizado e refletidas em normas sanitárias excludentes.

Uma situação similar envolve dois episódios de apreensão e descarte de produtos artesanais, queijos de leite cru e linguiças, ocorridos em setembro de 2017, veiculadas na imprensa, a indicar a urgência em se adequar as normas sanitárias à produção de alimentos tradicionais, patrimônio da sociobiodiversidade brasileira. Envolvia a elaboração de alimentos por chefes renomados, que pretendiam incluir esses alimentos em seu cardápio, mas foram impedidos pela fiscalização sanitária.[ii] Aconteceu no stand “Bar de Cachorro Quente”, da chefe em gastronomia Roberta Sudbrack, que estava motivada a mostrar um repertório alinhado com os sabores regionais brasileiros em seu ponto localizado no espaço Gourmet Square, uma das novidades do evento “Rock in Rio”, realizado entre os dias 15 e 24 de setembro, na Barra da Tijuca. Seria um espaço voltado para a gastronomia e para a qualidade dos produtos, mostrando ao Brasil e ao mundo uma culinária brasileira diferente e original. Logo no dia 15, primeiro dia do festival, a chefe Sudbrack compartilhou no Instagram a notícia da apreensão em seu stand de 80 quilos de queijo produzidos por pequenos produtores de Gravatá, em Pernambuco e 80 quilos de linguiça fabricadas em São Paulo, ambos com certificação do Selo de Inspeção Estadual (SIE), dos estados de origem. Faltava-lhes o Selo de Inspeção Federal (SIF), que permite a comercialização em todo o Brasil e a exportação dos produtos.  Não se tratava de questionar a própria operação realizada pela Vigilância Sanitária do Rio de Janeiro (VISA), sempre necessária para garantir as condições de saúde e higiene adequadas em um evento com grande público envolvendo refeição. A postagem da Chefe Sudbrack recebeu mais de 42 mil curtidas e 6 mil comentários de apoio.


Um segundo eposódio similar ocorreu no mesmo fim de semana em setembro, do outro lado do Atlântico, durante o evento Slow Cheese, organizado pelo Slow Food, na cidade italiana de Bra. Os queijos mineiros à base de leite cru foram retirados pelo mesmo motivo: a falta do SIF (Selo de Inspeção Federal).  Em junho, esses mesmos produtos tinham recebido medalhas de Super Ouro e Ouro no Concurso Mundial da França, tendo sido transportados na bagagem dos queijeiros. Retornando a Minas Gerais com as medalhas, esses queijos também foram apreendidos.


A questão de padronização de alimentos é tratada na sua relação com as sementes transgênicas na tese de doutorado de Naiara Andreoli Bittencourt, defendida em 2023, tendo por título: “O milho entre o alimento-cultura e a mercadoria-commodity: relações jurídicas dependentes e o cercamento das práticas dos povos agricultores no Brasil”, tese que mereceu menção honrosa da CAPES 2024.[iii] Com base em sua experiência profissional como advogada popular, o milho tem um significado especial para Naiara Bittencourt, pelo valor deste alimento para a cultura nacional, com sua bela descrição:



“Os milhos e os sujeitos coletivos que os cultivam sempre estiveram presentes nas nossas práticas político-jurídicas. Está no fubá, na polenta, na quirera e na canjica que compartilhamos em reuniões, eventos e encontros. Está nas receitas criativas das mulheres guardiãs da agrobiodiversidade. Está nas sementes coloridas das festas e feiras Paraná afora. Está na poesia de Euzébio de Albuquerque, agricultor do Polo da Borborema, na sala do Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Está nas lágrimas entristecidas dos agricultores que constatavam que seus milhos estavam contaminados pela transgenia nos testes realizados na Jornada de Agroecologia – e igualmente nas palavras emocionadas quando o resultado do teste era negativo. Está na chicha dos indígenas Ava-Guaranis em que fomos abençoados na Tekoha Y´Hovy por denunciar a situação de sítio do agronegócio no oeste do Paraná. Está na sustentação oral compartilhada com o professor Carlos Marés, que deu sobrevida à batalha processual na Ação Civil Pública sobre a contaminação genética entre cultivos de milho. Está nas audiências públicas no Senado sobre os retrocessos do Pacote do Veneno, que pode facilitar o registro já facilitado de agrotóxicos. Está na indagação se vale a pena colocar as sementes crioulas de milho nos cadastros e listas inventados pelos burocratas. Está no cuscuz produzido pelo MCP e no flocão de milho do MST. Está no contrato de comodato da agroindústria de processamento de milho do Coletivo Triunfo. Está no medo latente da cobrança de royalties pelas empresas. Está na luta pela edificação e manutenção das casas e bancos de sementes. Está na saída criativa de circulação de sementes com a pandemia paralisante e os desafios da simples emissão de notas fiscais de sementes crioulas. Está na expulsão cotidiana das comunidades tradicionais e indígenas com agrotóxicos utilizados como arma química. Está no Avati colorido das terras indígenas de Pinhalzinho" (p. 30).


A tese mostra que, no meio de uma série de irregularidades e até de contrabando para o Brasil de grãos geneticamente modificados, as empresas de sementes forçaram a sua aplicação no país. A soja transgênica foi introduzida no Brasil por meio de armação jurídica, pois em 2003 a Medida Provisória 131/2003 permitiu a comercialização de soja transgênica da safra 2003/2004, mesmo em desconformidade com a própria decisão judicial em ação cautelar, eis que até então seu cultivo era vedado pelo fato de que a autorização não havia preenchido os requisitos obrigatórios para a liberação, conforme a Constituição Federal e a Lei 8.974/1995.


“Em síntese, se aplicou, mesmo que indiretamente a 'teoria do fato consumado', no entendimento de que as relações jurídicas estavam de tal modo consolidadas, ainda que na ilegalidade, que já produziam efeitos jurídicos. As manobras jurídicas conseguiram trazer “legalidade à realidade” (p. 166).


A MP 223/2004, com suas normas para o plantio e comercialização da produção de soja geneticamente modificada na safra de 2004/2005 e a MP 131/2003 legalizaram o cultivo da soja transgênica. Ignoraram, assim, os riscos atinentes ao cultivo da soja transgênica, conforme o princípio da precaução, desconsiderando a Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento e o Protocolo de Cartagena da Convenção sobre Diversidade Biológica, que entrara em vigor em 2003 (p. 164).


Esses fatos denotam uma falha grave na proteção da saúde pública, em face da liberalidade aplicada para os transgênicos, que ingressaram no Brasil em desconformidade com a própria decisão judicial em ação cautelar e contrariando o princípio da precaução, enquanto a vigilância sanitária é mais rigorosa com os produtos artesanais na falta de uma legislação adequada. O debate sobre normas sanitárias mais inclusivas e adequadas à lógica e dinâmicas da produção familiar e artesanal faz parte da pauta de lutas políticas de movimentos sociais de camponeses, feministas, as agroindústrias familiares e organizações sociais e científicas, como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Slow Food e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).


As questões sobre a variedade de sementes, as sementes crioulas, e a cultura alimentar tradicional integram as ações da Articulação Nacional de Agroecologia para a construção de políticas públicas que promovam a agrobiodiversidade e valorizem seus guardiões e guardiãs.

:

PRINCÍPIO

DEFINIÇÃO

Identidade

As regiões têm suas próprias sementes, que são ao mesmo tempo meio de produção e meio de identificação cultural. Os trabalhos com sementes favorecem o resgate das identidades de

agricultor familiar, indígena e quilombola.

Autonomia

As experiências buscam garantir a autonomia no que diz respeito ao acesso às próprias sementes e a outros insumos, sistemas financeiros etc. Autonomia é também o reconhecimento do

agricultor como guardião e produtor de sementes.

Diversidade

Nossas experiências buscam manter e enriquecer a diversidade, o que se choca com a ideia “da boa semente” promovida por alguns programas de distribuição de sementes baseados na difusão

de uma ou poucas variedades melhoradas. “Boa semente” é o conjunto da diversidade.

Resistência

Resistência política em defesa da agricultura familiar camponesa e indígena e a resistência

biológica que as sementes locais apresentam frente a adversidades climáticas, solos pobres etc.

Cultura

As sementes carregam consigo uma cultura associada, implicando assim impossibilidade de que

elas possam ser submetidas a regimes de propriedade intelectual.

Tabela 14: Princípios extraídos de experiências com sementes no Brasil. Fonte: ANA, 2012937. Elaboração: Fernandes, 2017, p. 334.

 

Elaborada por Gabriel Bianconi Fernandes, a tabela acima sistematiza os princípios e as definições elencados pelas organizações e movimentos sociais articulados para a construção de políticas pública (p. 271).


A importância da luta pela diversidade das sementes crioulas e da alimentação mais natural e variada insere-se num contexto mais amplo relacionado com a cultura e os valores das comunidades tradicionais e campesinas que as utilizam e representa uma posição em defesa da soberania alimentar, na perspectiva do desenvolvimento da agricultura familiar e da agroecologia, para uma produção agrícola mais sustentável e um rompimento com um padrão alimentar e artificial imposto pelo sistema alimentar globalizado.


Será questão debatida na COP 30 em Belém, especialmente no evento paralelo a ser realizado pela Cúpula dos Povos, diante de sua pertinência com as mudanças climáticas.

 

 Notas


[ii] “Normas sanitárias, culturas alimentares e padronização do gosto: O que está em risco na hora de assegurar a qualidade dos alimentos”. Reportagem: Juliana Dias e Mónica Chiffoleau. Contribuições e revisões: Vanessa Schottz, Juliana Casemiro e Bibi Cintrão.https://fbssan.org.br/2017/10/normas-sanitarias-culturas-alimentares-e-padronizacao-do-gosto/



Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é advogada, mestra em Direito Constitucional e mestra em Patologia Social e associada do IBAP. Publica sua coluna todo dia 13 do mês.



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