-JULIO CESAR DE SÁ ROCHA-
A Universidade Zitouna ou al-Zaytuna é uma universidade da Tunísia sediada atualmente em Montfleury, Túnis, foi a primeira universidade criada em 737 d. C.
Segundo o historiador Hassan Hosni Abdelwaheb, é o estabelecimento de ensino mais antigo do mundo árabe, na verdade, de todo o globo. Era um lugar de ciência onde o ensino ministrado era ao mesmo tempo religioso (jurisprudência), literário e científico. Depois foi fundada Universidade al Quaraouiyine em 859 d. C., no atual Marrocos e foi fundada por Fatima al-Fihri. O mundo muçulmano estava no começo dos cinco séculos da era de Ouro do Islã. Posteriormente foi a Universidade de Alazar (Egito) em 988 d.C.
Portanto, muito antes da Universidade de Bolonha de 1088, considerada “oficialmente” como a instituição universitária mais antiga da história. Aliás, não à toa, os europeus foram os primeiros a denominar o termo "universidade" aquilo que os africanos criaram no século VIII. Ou seja, nem tudo começou na Europa, talvez, no máximo, a denominação universidade. Uma vez fui questionado numa aula de História do Direito porque tinha afirmado “a escrita não cria o direito, apenas modifica-o” (Norbert Rouland). Aliás, o direito romano tem importância indiscutível, mas sistemas jurídicos escritos e não-escritos existem muito antes da produção jurídica do século VI d. C. com o Corpus Juris Civilis, mesmo antes da Lei das XII tábuas em 450 a. C ou da Lex Aquilia, de 286 a. C. Bem verdade, milhares de séculos antes, o Código de Hamurabi em 1750 a. C, na Babilônia (atualmente território do Irã, Iraque) possui destacável relevância jurídica diante de sua complexidade, sendo considerado obra prima que se encontra no Museu do Louvre (França). São indicados na historiografia como códigos anteriores das cidades mesopotâmicas entre o Rio Tigre e o Eufrates: o Tratado de Estela dos Abutres – 2450 a.C.; o Código de Urukagina – 2350 a.C.; o Código de Ur-Nammu - 2100/2050 a.C.; o Código de Eshunna – 1930 a.C. e o Código de Lipit-Ishtar – 1870 a.C.
As leis mesopotâmicas dispunham sobre indenização em pecúnia e ruptura matrimonial, limitavam atuação dos funcionários palaciais e regulavam obrigações contratuais. Por exemplo, nas Leis de Eshunna se indicava “Se um barqueiro é negligente e deixa afundar o barco, ele responderá por tudo aquilo que deixou afundar” (artigo quinto) ou “se um cão for considerado perigoso, e se as autoridades da Porta preveniram o proprietário do animal, mas o cachorro morder um cidadão causando a morte deste, o proprietário do cão deve pagar dois terços de uma mina de prata” (artigo 56).
Indo um pouco antes da codificação mesopotâmica, os egípcios (também, africanos) tinham sistema jurídico extremamente complexo na Antiguidade. Ou seja, nem tudo começou na Europa. Com efeito, entre 3000 a 2500 a. C. o Direito Egípcio possuía fontes históricas deterioradas, não há indícios de codificação propriamente dita, mas foram encontrados excertos de contratos, testamentos, decisões judiciais e atos administrativos (com a decifração dos hieróglifos). A maioria do material disponível sobre o aspecto legal da vida no Antigo Egito é composta por documentos da prática jurídica (registos dos tribunais, contratos, testamentos, em escritos privados, em decretos‐reais) e por trabalhos literários (Sabedorias e Lamentações e autobiografias) não diretamente relacionados com o sistema jurídico. Por fim, cabe registrar a simbologia jurídica Livro dos Mortos – Papiro Nu, passagens elucidativas do sistema jurídico (Império Novo, 1580 – 1085 a.C.), em que ocorre a confissão negativa: o morto deveria apresentar-se a Osíris e ser julgado conforme seu comportamento em vida devendo ser a instância presidida pela deusa Maat com simbolismo da balança pena de um lado e o coração de outro: equilibrada (cidadão justo, íntegro), possibilidade de lugar no reino do Além; caso contrário (impuro) a pessoa tinha que ser devorada por Ammut.
Portanto, os africanos foram os primeiros a tratar a justiça com a simbologia da balança, inclusive muito antes de gregos e romanos. Nem tudo começou na Europa.
Por sua vez, pouco se propaga que o sistema jurídico egípcio tinha como característica um direito privado com autonomia da vontade, valorização da retórica, lógica individualista com as pessoas consideradas iguais perante o direito, sem privilégios: marido e mulher considerados com igualdade e casamento como algo particular.
O Judiciário kenbet aat (tribunal superior) aplicava a maat (princípio da justiça, significando também a deusa da justiça). O faraó julgava em última instância. O chefe da justiça comandava os juízes, dirigindo o serviço e fazendo leis. O vizir poderia julgar pelas leis e regulamentos. O vizir era o representante supremo do rei, responsável por todas as áreas da administração e funcionamento do país e, como tal, também dirigente do aparelho judiciário. O vizir presidia o Grande Tribunal, sendo o responsável pelo julgamento dos casos de maior gravidade. Enquanto juiz ouvia depoimentos, tratava das diligências necessárias e proferia as sentenças. Julgava essencialmente questões civis complexas, que escapavam aos tribunais locais e que poderiam estabelecer um precedente legal. O aparelho judiciário egípcio era, pois, encabeçado pelo vizir. Acima dele só o faraó e, abaixo dele, uma imensa máquina burocrática que assegurava a manutenção do funcionamento da administração do país e em particular do domínio jurídico. Isto é, tal como o faraó delegava poderes ao vizir, também este se apoiava num conjunto de funcionários que o auxiliavam no cumprimento das suas funções. Para além do Grande Tribunal existia os tribunais locais, que estavam espalhados por todo o território, sendo também conhecidos como tribunais do nomo. Eram presididos pelo nomarca e constituídos por uma assembleia composta pelos homens mais proeminentes da comunidade. Estes tribunais tinham competências em casos civis (cumprimento de obrigações, litígios de propriedade e familiares) e penais (casos de violência, roubo entre privados e violação de costumes).
Enfim, nem tudo começou na Europa, nem a própria humanidade (homo sapiens sapiens), sendo fundamental que se possa construir “um paradigma da contracolonização na perspectiva da resistência cultural” no dizer do intelectual Antônio Bispo, do Quilombo Saco-Curtume, no Piauí. Neste sentido, foi a lógica de dominação da Europa que provocou extermínio de gentes e culturas. Nos cabe respeitar as produções diversas e romper com o pensamento eurocentrado, valorizando conhecimentos e saberes de diferentes povos na formação do que somos.
JULIO CESAR DE SÁ ROCHA é Professor da Faculdade de Direito da UFBA. Atualmente, ocupa a função da Diretor da unidade para o período 2017-2021.
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