-DANIEL FERRAZ-
Como educador linguístico e formador de professores há mais de duas décadas, escrevo a minha contribuição deste mês para a PUB com os sentimentos de revolta e impotência em meus dedos. Mas antes, quero agradecer e discutir as falas de Marcelo Adnet e Gregório Duvivier. Sim, admirados humoristas, haja humor para aguentar o Brasil de 2020!
"As políticas progressistas no Brasil são a única forma que faz sentido para diminuir as diferenças abissais, em vez de largar a mão”.
“O lado governista atualmente tem uma forma de comunicação muito breve, é em meme, uma frase, um chora mais. Enquanto a esquerda é muito mais psicologizada, falando de uma maneira foucaultiana, o fascismo moderno… E todo esse discurso acadêmico da esquerda, que eu tenho também, acaba afastando a população, porque não comunica, ele é chato”.
O filósofo português Boaventura de Sousa Santos vem apontando que as sociedades modernas (e as suas relações) ocorrem por meio de linhas abissais, as quais mantém um abismo entre tudo que considera moderno e correto (nesse bojo, estão o modelo de sociedade europeu, o capitalismo, o neoliberalismo, o humanismo, o civilizado) e o que se deve excluir/eliminar, ou seja, tudo que não cabe nos paradigmas da modernidade (nesse bojo, estão os outros seres de Gaia, os animais, as plantas, as cosmologias indígenas, os “bárbaros” não civilizados, os humanos subalternizados, a periferia do sistema). As linhas abissais são excludentes e, dentro do projeto da modernidade, criam mais linhas abissais entre ricos e pobres, “educados” e “ignorantes”, donos da verdade e o resto. Podemos pensar, ainda, nas linhas abissais que se estabeleceram na política partidária em nosso país, pois nessa dicotomização entre esquerda e direita (concordo com Adnet), um lado optou pela comunicação simples e breve e, em muitos casos, calcada em mentiras (como veremos abaixo) e o outro optou pela comunicação complexa, embasada e de difícil acesso para uma parcela da população (a autocrítica me obriga a colocar este texto deste lado da linha.) De modo algum este lado não mente, mas pelo menos tenta reconhecê-las. Ainda não temos uma comunicação simples e isso é um desafio se queremos algo diferente em 2022.

Com Duvivier, aprendo muito com seu humor crítico e elucidativo. Vejo tudo que posso. Queria rir, mas rio pouco. Na verdade, choro; choro ao ver o Brasil de 2020 sangrar como nunca. No episódio “dedicado” à Damares (28/08/2020), Duvivier me deu uma aula. Com base em seu humor, quero brevemente discutir o projeto de desmonte da educação brasileira citando apenas um exemplo: a Ministra. É humor, mas é sério, é macabro, bem pensado.
A tal ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, considerada por muitos uma piada (se for, é de péssimo gosto), vem desenhando e implantando políticas com base em sua religião há pelo duas décadas no Congresso Nacional (nada de piada, seu projeto vem dando certo, uma vez que continua no poder). Advogada e pedagoga, criou a ANAJURE, Associação Nacional de Juristas Evangélicos, cuja Declaração de Princípios assevera: “Reconhecemos que a Bíblia é a palavra de Deus, divinamente inspirada, inanerrante (*sic), infalível, verdadeira, sendo ela a nossa única regra de fé e conduta” (caro leitor, você consegue acreditar nisso?). Com isso, a ministra lidera uma cruzada contra o aborto e o que vem chamando de ideologia de gênero nas escolas (aliás, slogan deste desgoverno). Retomando Adnet, com uma linguagem fácil e apelativa (“menino veste azul e menina veste rosa”, “Não é a política que vai mudar esta nação, é a igreja”) a tal ministra convoca as massas por meio de seu fanatismo. Porém, as consequências são gravíssimas, pois foram mais de 160 projetos tramitados nacionalmente contra a tal ideologia de gênero nas escolas.
Como se não bastasse não termos um Ministério da Educação que pense na educação pública de qualidade, laica, diversa e multifacetada, a tal ministra demonstra total despreparo ao falar de educação e, pior ainda, mente descaradamente. Para Duvivier, sua técnica envolve iniciar sua argumentação com uma premissa falsa (inexistente) que leve a uma resposta falsa (inexistente), por meio da distorção de fatos isolados (aliás, prática corrente neste desgoverno). Vejamos:
- Em vídeo com um pastor de igreja (provavelmente com milhares de visualizações e likes), a tal ministra afirmou que os professores dizem aos alunos: “(...) você não é menino, conseguem entender a confusão? Conseguem entender que os meninos estão confusos e por conta disso está se suicidando, estão se cortando?”. Oi? Inacreditável. Alguém tem que informar a ministra que os jovens sofrem porque não tiveram qualquer orientação sexual e de gêneros em sua vida escolar e é por isso que se tornam adultos homofóbicos, sexistas e machistas.
- No caso de uma escola em Curitiba, de uma prova que erroneamente continha a imagem de um fazendeiro (a escola inclusive se retratou), a tal ministra afirmou que a educação no Brasil faz “apologia ao sexo com animais” (Damares). Aliás, quem afirmou que “a gente ia atrás de galinha no galinheiro, todo mundo fazia isso!”, foi o seu presidente atual. E aí, o seu presidente pode?
- Sobre o episódio da então prefeita de São Paulo Martha Suplicy, a tal ministra, com base em uma reportagem que nunca existiu, mente ao afirmar que o projeto da prefeita incentivava masturbação em bebês.
E, por fim, o caso da educação holandesa. Novamente, a tal ministra afirma que os holandeses defendem a masturbação de bebês. Mais uma mentira. Enfim, as questões, para mim, são: como uma parte da população brasileira consegue ser constantemente manipulada, mesmo com provas cabais de que os fatos inexistem? É por conta da linguagem simples e breve? São as piadas de mau gosto que estavam engavetadas, mas sempre fizeram parte do simulacro machista, homofóbico, racista e classista do brasileiro? Ou tudo está normal, e agora é a terraplana que gira? Quais ferramentas epistemológicas precisamos para entender tudo isso?
Um país que possui um projeto de educação que não respeita a sua evolução histórica e suas conquistas educacionais de décadas, não pode ser levado a sério. Um país em que se confundem os papeis da educação, (uma) religião, conceitos de família, gêneros e sexualidades, não pode ser levado a sério. Um país que tenta eliminar as diferenças por meio da manutenção de linhas abissais entre “o que eu acredito vale” e “o que você pensa não vale nada”, não pode ser sério. Um país que tenta eliminar seu maior educador, reconhecido mundialmente, cujo livro Pedagogia do Oprimido é o terceiro trabalho na área de humanidades mais citado historicamente, não é sério. Sr. Presidente, Sra. Ministra e Sr. Ministro da Educação, por favor, dialoguem conosco. Ainda nos resta algum tempo para pensarmos em uma educação que prepare nossos estudantes para o Século XXI. Não podemos ser uma piada de mau gosto. Não podemos ser uma piada internacional. Não podemos ser uma piada nacional. Não queremos.
DANIEL FERRAZ é docente no curso de Letras-Inglês da Universidade de São Paulo e forma professores há 25 anos.
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