Entrevista exclusiva com Ícaro Maldonado e Gael Ventura para a Revista PUB
- Guilherme José Purvin de Figueiredo
- há 2 dias
- 16 min de leitura
Atualizado: há 2 dias
Guilherme Purvin
A Revista Pub – Diálogos Interdisciplinares realizou, em 22 de novembro de 2025, uma conversa inesperada com os pensadores Ícaro Maldonado e Gael Ventura. O encontro ocorreu de modo inteiramente fortuito na Estância Cristina, a cerca de vinte quilômetros de El Calafate, na Província de Santa Cruz, extremo sul da Argentina. Fomos para lá por razões meramente turísticas, para comemorar o encerramento do curso sobre Literatura e Ecologia. Levei comigo dois livros: A Ideologia Alemã e Dom Quixote, mas sequer tive condições de abri-los. Chegamos ao local por catamarã, que leva cerca de 90 minutos para cruzar o lago permeado de icebergs.
O que eu não imaginava era encontrar, naquela paisagem ventosa e glacial, duas figuras tão centrais do pensamento crítico contemporâneo. Ambos se mostraram extraordinariamente afáveis e, por feliz coincidência, eu trazia comigo um pequeno gravador portátil — adquirido meses antes, durante outra viagem à Argentina, quando entrevistei comunidades originárias de Jujuy sobre sua resistência à exploração de lítio nos salares da região. A seguir, apresento a transcrição dos principais trechos dessa conversa. Registre-se que, a princípio, Gael Ventura pretendia apenas comentar as respostas de Ícaro Maldonado; mas, como se verá, sua voz acabou por se adensar e expandir, transformando-o, de fato, em um segundo entrevistado. As fotos, a cargo de minha companheira Ana Cristina, infelizmente se perderam em razão da queda de seu telefone celular nas águas gélidas de um dos rios que alimentam o lago.
Revista Pub. Nos últimos anos, diversos analistas têm apontado que a transição do emprego fordista para formas flexíveis, intermitentes e digitalizadas de trabalho desorganizou a classe trabalhadora e diluiu sua experiência comum. Diante da ascensão do trabalho de plataforma, da atomização dos vínculos laborais e da captura subjetiva que transforma o trabalhador em gestor de si mesmo, ainda é possível falar em proletariado como sujeito histórico? Ou vivemos um processo irreversível de desarticulação política da força de trabalho?
Ícaro Maldonado. O que chamamos de precariado é menos um novo ser social do que uma metamorfose da mesma relação estrutural de exploração. A instabilidade — vínculos frágeis, jornadas quebradas, remuneração incerta — cria a impressão de que o proletariado se dissolveu, mas isso é apenas a superfície. O capital reorganiza sua dominação, e essa reorganização gera novas formas de consciência. O problema central é a fragmentação: sem locais comuns, sem vínculos duradouros, a solidariedade não se forma sozinha. A ideologia neoliberal transforma cada trabalhador em microempresa, internalizando culpa e fracasso. Mas é justamente essa precarização generalizada que pode abrir espaço para recomposições inéditas: redes territoriais, vínculos afetivos, coletividades emergentes. Sim, há possibilidade de reascensão — não na repetição dos modelos clássicos, mas na capacidade de transformar vulnerabilidade comum em instituição política. O sujeito não desapareceu; perdeu formas antigas. Se ele voltar a se reconhecer como coletivo, poderá disputar novamente a imaginação social. O capital mudou de pele; a resistência também precisará fazê-lo, sem esquecer o conflito que a fundamenta.
Gael Ventura. Enquanto o escuto, percebo algo que passa por baixo da sua análise: uma espécie de silêncio resistente. Não aparece em assembleias, mas pulsa no corpo de quem trabalha sem garantia de amanhã. Mesmo quando chamam o trabalhador de “empreendedor de si”, ele sente — no fundo do dia — que há algo errado que não é culpa sua. Esse desconforto, por mais disperso que esteja, é um começo. Talvez a classe esteja desfigurada, mas não apagada; talvez procure apenas um modo novo de se reconhecer. Penso que a dor partilhada ainda pode servir de brasão — não um brasão antigo, de fábrica e fumaça, mas um que nasça da própria vulnerabilidade comum. E se ainda sofremos juntos, quem sabe ainda possamos sonhar juntos.

Revista PUB. Assistimos recentemente à queda ruidosa de figuras que, por algum tempo, ocuparam o imaginário da esquerda brasileira como depositárias de autoridade intelectual. A súbita erosão do prestígio de nomes como Silvio Almeida e Alysson Mascaro — por razões distintas, mas igualmente sintomáticas — evidencia uma fragilidade estrutural na forma como o campo progressista tem produzido, consagrado e sustentado suas referências públicas. Em um cenário no qual a direita global opera com máquinas de influência cada vez mais sofisticadas, e a esquerda segue tensionada entre moralismo, personalismo e carência de formação de base, que impacto essas crises individuais têm na possibilidade de construção de novas lideranças, de renovação teórica e de uma verdadeira vanguarda política?
Ícaro Maldonado. Do ponto de vista histórico, eu diria que isso é grave, mas não é exatamente uma novidade. A esquerda tem, com certa frequência, a tendência de personalizar demais aquilo que é, em essência, tarefa coletiva. Quando duas figuras muito visíveis sofrem um abalo — seja por contradições pessoais, erros políticos ou condutas eticamente problemáticas — a mídia hegemônica transforma isso em espetáculo, e o senso comum rapidamente conclui: “a esquerda acabou”, “não há mais referências”. Isso é funcional ao bloco dominante. Primeiro ponto: não existe vanguarda baseada em biografias individuais. Se o projeto depende de dois ou três nomes, ele já nasceu frágil. O marxismo sempre insistiu que o protagonismo pertence às classes em luta, às organizações, aos movimentos. Intelectuais são importantes, claro, porque ajudam a nomear, sistematizar, articular experiências difusas. Mas não substituem partido, sindicato, coletivo, conselho popular, movimento de moradia, frente de mulheres, articulação negra, indígena, periférica. Segundo ponto: é um erro imaginar que a crítica a comportamentos inadequados “enfraquece a esquerda”. Na verdade, é condição de maturidade política. Um campo que não é capaz de enfrentar publicamente o machismo, o abuso de poder, o autoritarismo interno, o culto à personalidade, acaba reproduzindo no seu interior a mesma lógica que diz combater. Se a esquerda pretende disputar a hegemonia, precisa ser minimamente coerente com os valores que proclama. Autocrítica não é luxo moral: é requisito estratégico. Terceiro ponto: o baque dessas figuras expõe um problema de fundo: a excessiva concentração simbólica. Em vez de formar centenas de quadros, espalhados por universidades, escolas, sindicatos, ocupações, coletivos culturais, redes digitais, a esquerda muitas vezes se apoia em meia dúzia de “celebridades críticas”. Quando uma cai, provoca-se um vazio artificial que o capital corre a preencher com cinismo e apatia. O que fazer, então? Em termos de estratégia, eu diria: Despersonalizar a esperança. Menos foco em “salvadores intelectuais” e mais investimento em processos formativos de base: círculos de estudo, escolas de formação, coletivos de pesquisa militante, produção de conhecimento em periferias, quilombos, aldeias, movimentos sociais. Ligar teoria à prática. Intelectual orgânico não é quem fala difícil, mas quem coloca seu trabalho a serviço de um projeto coletivo, e se deixa também transformar por ele. Isso implica prestar contas, ouvir, aceitar crítica, rever posições. Construir vanguardas plurais. Em vez de um rosto único, múltiplos polos de liderança: mulheres negras, indígenas, pessoas LGBTQIA+, trabalhadores precarizados, intelectuais populares, artistas, educadores. A vanguarda, hoje, não pode ser homogênea nem masculina, nem branca, nem universitária demais. Transformar crise em aprendizado. O abalo dessas figuras deveria ser tratado não como oportunidade de linchamento moral, mas como alerta sobre as formas de poder dentro do próprio campo progressista: como escolhemos nossos porta-vozes? Como lidamos com o prestígio? Que mecanismos de controle interno temos? Em síntese: episódios como esses expõem fissuras, mas não anulam a tarefa histórica. Se a esquerda aprender com o erro, sairão enfraquecidos os ídolos individuais, mas pode sair fortalecido aquilo que realmente importa: a capacidade de uma classe explorada produzir, coletivamente, a sua própria inteligência e suas próprias lideranças.
Gael Ventura. Você fala da fragilidade que nasce quando depositamos em poucos indivíduos a tarefa de pensar por muitos — e eu reconheço essa verdade dolorosa. Mas, ouvindo-o, ocorre-me que talvez o problema não seja apenas a concentração simbólica, e sim a nossa dificuldade, como sociedade, de aceitar que o pensamento é uma obra paciente, feita de muitas mãos, muitas vozes, muitos silêncios. Quando uma figura cai, o susto é proporcional ao vazio que deixamos existir em torno dela. Não porque era inevitável que fosse assim, mas porque, por comodidade ou desânimo, delegamos a ela aquilo que deveria ser responsabilidade comum: a busca por sentido. Concordo com o senhor: nenhuma vanguarda nasce de biografias isoladas. Ainda assim, gostaria de lembrar que, por trás de cada decepção pública, há também um anseio — talvez ingênuo, mas profundamente humano — de encontrar alguém que diga em voz alta aquilo que muitos só conseguem sentir em silêncio. Esse anseio não deve ser desprezado. Deve ser educado. A esquerda, como o senhor bem coloca, precisa aprender a formar não ídolos, mas pessoas dispostas a servir a um bem maior que elas mesmas. E isso só se faz cultivando uma ética comum, um hábito de responsabilidade compartilhada. Se ainda nos entristecemos com essas quedas, é porque ainda esperamos grandeza de alguém. Talvez o trabalho agora seja transformar essa expectativa em disposição coletiva, para que a grandeza não precise mais de um rosto, mas encontre morada em muitos.

Revista Pub. Nas últimas semanas, intensificaram-se sinais de uma ofensiva norte-americana no Caribe: movimentação naval atípica, operações “antinarcóticas” de contornos nebulosos, apreensão de petroleiros e um discurso crescente de criminalização do Estado venezuelano. A retórica do governo Trump parece pavimentar um consenso artificial segundo o qual a Venezuela se tornou um alvo militar legítimo, abrindo espaço para ações que já não se limitam ao campo diplomático. Face a esse quadro, o senhor considera que estamos diante de uma simples escalada retórica, ou de uma forma contemporânea de intervenção — uma espécie de guerra híbrida que prepara, em etapas, a aceitação internacional de uma futura incursão militar direta?
Ícaro Maldonado. Veja, se a gente olhar com sangue frio, o que está em curso não é exatamente o “filme clássico” do desembarque de marines na praia de La Guaira amanhã de manhã. O que temos é algo mais perverso: um processo de guerra em câmera lenta, feito de bloqueio, ataques “cirúrgicos” e construção de pretextos jurídicos e midiáticos. Os fatos são eloquentes. Os EUA já deslocaram navios de guerra e tropas para o Caribe sob o rótulo de combate ao narcotráfico, começaram a fazer ataques a embarcações ligadas à Venezuela e à Colômbia, com dezenas de mortos, sempre apresentados como “narcoterroristas” sem prova pública nenhuma. Ao mesmo tempo, há uma escalada naval, com reativação de bases em Porto Rico e aumento de efetivo na região, suficiente para pressionar e atacar, mas ainda insuficiente para uma ocupação terrestre clássica. Agora somam-se as apreensões de petroleiros e a narrativa de “pirataria”, o que é quase um bloqueio econômico não declarado. Do ponto de vista marxista, isso tem nome: imperialismo em fase de gestão de crise. Não é apenas o petróleo venezuelano, embora ele pese muito; é também a necessidade de um inimigo externo que legitime a expansão dos poderes executivos nos EUA, o complexo militar-industrial e a disciplinarização do quintal latino-americano. A rotulagem de “narco-Estado”, “narcoterrorismo” é funcional porque desloca o conflito do plano político para o policial/moral: em vez de reconhecer um Estado periférico em disputa interna, você fabrica um monstro contra o qual tudo é permitido. Então, há “ameaça de invasão”? Há ameaça, sim, mas precisamos nomeá-la direito. O que está em curso é uma guerra híbrida que combina estrangulamento econômico (sanções, tarifas, apreensão de navios), pressão militar constante (navios, bases, exercícios, ataques “selecionados”), e construção ideológica de consenso (a ideia de que qualquer ação contra Caracas é “defesa da democracia” ou “guerra às drogas”). Uma invasão terrestre ampla seria o último degrau dessa escada, não o primeiro. E o capital norte-americano é pragmático: prefere operar à distância, com baixo custo político interno, testando até onde pode ir sem desencadear uma reação conjunta na região, especialmente de Brasil, Colômbia e México. Como eu vejo, portanto? Vejo um cenário em que o governo Trump joga conscientemente com o limite: vai normalizando a ideia de que a Venezuela é um alvo militar legítimo. Cada petroleiro apreendido, cada barco afundado, cada reforço naval é mais um tijolo na construção simbólica de que uma “intervenção maior” seria apenas o passo lógico seguinte. Isso é típico do imperialismo: antes de invadir territórios, invade-se a imaginação. A pergunta estratégica, para nós latino-americanos, não é só “Trump vai invadir?”, mas: como impedir que essa guerra por etapas se torne aceitável? Porque quando a guerra se torna normal, a invasão já começou – ainda que nenhum soldado tenha pisado em Caracas.
Gael Ventura. O que Ícaro descreve — essa guerra que avança sem que percebamos os passos — inquieta-me sobretudo porque ela se infiltra não apenas nas rotas marítimas ou nos discursos oficiais, mas no modo como as pessoas comuns começam a pensar. Antes que um país seja atacado, a consciência coletiva já foi dobrada para aceitar o ataque como inevitável, quase razoável. Guilherme, Ana Cristina, perdoem, mas este frio cortante parece querer entrar na conversa como terceiro interlocutor. Fico até em dúvida se o ruído não vai perturbar o seu gravador. Na minha velha Mancha também venta sem descanso, os moinhos que o digam, mas não com essa frieza que morde as ideias. Talvez por isso eu pense tanto no que se desloca no ar antes de deslocar os homens.

Revista Pub. Não se preocupe, Gael. O gravador tem uma espuma protetora ao redor do microfone para evitar que o ruído seja registrado. Prossiga, por favor.
Gael Ventura. Bom, como dizia: o verdadeiro campo de batalha nunca é apenas o mar do Caribe; é o terreno da linguagem. Quando um Estado passa a ser carimbado de “narco-Estado”, quando vidas inteiras são reduzidas a categorias morais maleáveis, forja-se uma anestesia que nos dispensa de perguntar quem morre, por quê e a mando de quem. O senhor afirmou que o imperialismo invade primeiro a imaginação. Concordo — e diria ainda que é justamente aí que começa nossa responsabilidade: impedir que a imaginação seja colonizada antes mesmo dos territórios. Não temos navios nem tropas. Temos palavras. E, às vezes, elas são a única trincheira restante contra aquilo que se apresenta como simples “operação policial”. O perigo maior não é que Trump invada Caracas amanhã; é que, quando isso ocorrer — de forma explícita ou disfarçada — muitos já tenham sido treinados a ver nessa violência um gesto de ordem.
Por isso, agradeço a franqueza de sua resposta, Ícaro. Nomear as coisas pelo seu nome é, nesta época turbulenta, um pequeno ato de coragem. E os povos latino-americanos precisam desesperadamente de pequenos atos de coragem antes que lhes arranquem, outra vez, o direito de decidir o próprio destino.
Ana Cristina. Gui, ande mais depressa! Você parece um velhinho se arrastando. Desse jeito, vamos chegar no hotel somente à noite.
Revista Pub. Num cenário em que a juventude tem sua atenção disputada por plataformas hiperaceleradas, afetos modulados por algoritmos e desejos continuamente capturados pela lógica mercantil, tornou-se comum a acusação de que os jovens teriam se afastado de qualquer horizonte político mais amplo. Mas será mesmo desinteresse, ou estamos diante de uma forma nova — e talvez mais profunda — de exaustão subjetiva produzida pelo próprio capitalismo digital? Como o senhor entende a relação entre essa juventude e a luta de classes, e que caminhos enxerga para que ela possa reencontrar, não por doutrinação, mas por experiência, um sentido coletivo na própria vida?
Ícaro Maldonado. Eu não parto da premissa de que essa juventude é “alienada por natureza”. Ela é filha de um tempo em que tudo — do desejo à atenção — virou mercadoria. O TikTok, as drogas recreativas, o sexo performado, nada disso cai do céu: é parte de uma economia que captura a imaginação para impedir que ela se volte contra as estruturas que realmente mandam no mundo. A questão, portanto, não é repreender a juventude, mas compreender o que está gritando por trás desse aparente desinteresse. Quando um jovem passa horas em vídeos de quinze segundos, não é preguiça política: é a busca por algum tipo de sentido imediato num mundo que o empurra para a competição permanente e oferece um futuro cada vez mais apertado. É anestesia — não indiferença. Eu não proponho “converter” ninguém à luta de classes como se fosse catequese. Proponho abrir brechas onde a experiência deles já está pedindo alguma coisa a mais: espaços culturais onde política não seja palestra, mas convivência; núcleos de estudo que não tratem o jovem como ignorante, mas como alguém que já vive a precarização na pele; formas de militância que não exijam sacrifícios heroicos, mas que conectem seus problemas cotidianos aos mecanismos do capital; e, sobretudo, escuta. Nenhum jovem vai se engajar num projeto que o trate como culpado por não ser um monge revolucionário. A juventude não está “nem aí” para a luta de classes. Ela está, isso sim, vivendo-a de maneira brutal, numa forma tão difusa e fragmentada que não consegue nomear. A função de quem pensa politicamente não é acusar, é oferecer linguagem, direção e afetos que transformem essa experiência dispersa em consciência organizada. Se algum dia a juventude voltar a ocupar as ruas, as escolas, os aplicativos, os corpos — e isso sempre volta — não será porque alguém fez um sermão. Será porque ela percebeu que o seu próprio mal-estar tem causas estruturais. E que a política, longe de ser tédio, pode ser a primeira forma de respirar.
Gael Ventura. Permita-me acrescentar algo, não como contraponto, mas como eco da sua reflexão. Sempre que ouço alguém falar dessa juventude com descrença — como se ela fosse irrecuperável — sinto que estamos olhando para ela com as lentes erradas. O senhor diz que aqueles vídeos rápidos, quase hipnóticos, não são sinal de preguiça, mas de busca. Acredito nisso profundamente. O jovem que desliza o dedo pela tela está, na verdade, procurando algo que o alivie, ainda que por segundos, de um sentimento de insuficiência que não nasceu com ele, mas lhe foi imposto. Não vejo alienação; vejo fadiga. E fadiga, ao contrário da indiferença, é sempre um sinal de que algo dentro da pessoa ainda resiste. Quando o senhor fala em oferecer brechas, penso que essa é talvez a tarefa mais difícil hoje: criar lugares onde um jovem possa respirar sem ser medido, comparado, avaliado, convocado a performar. Lugares onde possa descobrir que não está sozinho na sua inquietação — e que essa inquietação, compartilhada, já é o início de uma política. Eu só acrescentaria uma esperança: a de que nenhuma geração, por mais capturada que pareça, perde totalmente a capacidade de maravilhar-se. E quem é capaz de maravilhar-se também é capaz de indignar-se. E quem se indigna, cedo ou tarde, encontra seus iguais. Talvez não devamos perguntar ‘como ensiná-los a lutar’, mas sim: ‘como deixar que eles reconheçam, sem vergonha, que já estão lutando contra um mundo que lhes cobra muito e lhes devolve pouco’. O senhor disse que a política pode ser a primeira forma de respirar. Eu diria que, para muitos deles, poderá ser também a primeira forma de se sentir inteiro.
Ana Cristina. Já chega. A entrevista está enorme, o Rui vai vetar! Termina logo com isso e acelera o passo.
Revista Pub. Estou adorando esta entrevista, mas vocês estão vendo a pressão que a Ana faz. Então para terminar, queria que os senhores falassem um pouco sobre o Arrigo, de Marcelo Ridenti. Destaco, aliás, que na edição de dezembro da Revista Cult, será publicado um ensaio dele intitulado "Um desconfiado na contramão do capitalismo", sobre o Roberto Schwarz. Só espero que o pessoal da Cult não cometa algum erro grave como se esquecer de colocar o nome dele como autor do artigo.
Ígor Maldonado. Vou ser franco: gostei de Arrigo, mas não como manual — gostei como quem reencontra um velho camarada entre escombros. Ridenti não improvisa: décadas de pesquisa sobre esquerda, cultura e intelectuais atravessam cada página. Não é sociólogo “brincando de ficção”; é alguém que domina os arquivos e, desta vez, decide cruzá-los com imaginação. O dispositivo narrativo — o narrador isolado no edifício Esplendor, diante do velho Arrigo imóvel na cadeira — funciona como alegoria da própria esquerda brasileira: confinada entre ruínas, organizando a memória antes que tudo desabe. E Arrigo me interessa justamente porque não é herói puro: é composição de muitos — Apolônio, brigadistas, resistentes ao nazismo, militantes da ditadura, exilados. Um sujeito coletivo em forma de romance, o que, marxisticamente, faz sentido: biografias valem quando condensam experiência histórica. O livro acerta no tom épico-irônico, sem panfleto nem santificação. Mostra contradições, fracassos, escolhas ruins. Reconta greve de 1917, 1935, Guerra Civil Espanhola, resistência francesa e ditadura de 64 sem virar aula. Mas, como toda obra ambiciosa, tem riscos: uma certa monumentalização nostálgica, a sensação de que a história grandiosa já passou e estamos apenas narrando ruínas. Falta maior contato com o presente — precariado, periferias, economia digital, dilemas da esquerda pós-lulista. E ainda é um romance muito masculino: as mulheres aparecem, mas o eixo permanece no militante-homem atravessando guerras e amores. Dito isso, Arrigo é, acima de tudo, uma grande narrativa da derrota que não renuncia à luta. O prédio cai, os corpos envelhecem, os projetos falham, mas o ato de contar resiste. Eu não o tomaria como guia para o futuro, e sim como inventário afetivo-político de um século de combates. Quem quiser entender por que ainda faz sentido falar em esquerda neste país pode começar por aqui — não para imitar Arrigo, mas para reconhecer o material de que são feitos os que, mesmo vencidos mil vezes, seguem de pé. Ah — e se em algum periódico por aí, digamos na Cult, acontecer de omitirem o nome de Marcelo no crédito do ensaio, que não se culpe a teoria literária: culpe-se a estafa do revisor submetido ao regime quase fabril imposto pelo mercado editorial. Acontece nas melhores redações.
Gael Ventura. Permitam-me começar dizendo algo que ainda me intriga: a ausência do nome de Marcelo Ridenti no artigo da Cult não me surpreende. A mesma gente que espalha assombros sobre La Mancha — ventos que mudam de rumo, sombras que apagam assinaturas inteiras — parece ter soprado também sobre aquela edição. Digo isso porque, no caso de Arrigo, os apagamentos começam cedo. Estranhei, sim, que Marcelo não registrasse minha presença em momentos decisivos da vida daquele homem. Não por vaidade — disso nunca precisei —, mas porque eu estava lá. A casa onde o romance começa e termina eu conheço como quem sabe o peso das pedras do chão. Visitei Arrigo inúmeras vezes, muito antes de Marcelo surgir com seus cadernos. Levava vinho barato, queijo embrulhado em jornal e, sobretudo, os livros de cavalaria que lhe acalmavam o peito quando o mundo parecia pesado demais. Ele virava as páginas com o polegar lento, como se cada folha guardasse uma batalha que não chegou a ocorrer, mas poderia. Sentamos muitas vezes naquela varanda onde, no romance, ele surge imóvel. Imóvel ele nunca esteve. O corpo cansava, é verdade, mas os olhos perseguiam tudo: o vento na poeira, os passantes, os ruídos da rua como se fossem sinais de um exército distante. Líamos juntos Amadís de Gaula, e ele ria daquele riso sem dentes, dizendo que os cavaleiros antigos eram menos ingênuos que os políticos modernos. E quanto às manifestações anarquistas do início do século… essas, então, me deixaram boquiaberto pela ausência. Arrigo estava lá; eu também. Uma noite fugimos pelos fundos de uma padaria, com a polícia montada atrás porque distribuímos panfletos mais anticlericais do que prudentes. Arrigo tropeçou numa valeta, puxei-o pelo braço, perdemos um chapéu — e ninguém registrou isso. Esses detalhes respiram vida, e vida é justamente o que falta às versões muito arrumadas. Por isso, quando Ícaro fala em “dispositivo narrativo”, “sujeito coletivo” e “condensação literária”, o escuto com respeito, mas não reconheço o homem que conheci. Para mim, não há alegoria nenhuma: há Arrigo. Com seus silêncios, suas manias, seu cansaço, sua coragem e o modo como encarava o vento, como se conversasse com ele. Se Marcelo escreveu, foi para salvar o que pôde dos papéis. Mas muito do que realmente existiu ficou do lado de fora. E eu estive presente — sempre com vinho, queijo e livros de poeira antiga, como ele gostava, e como continuam gostando os velhos cavaleiros que, apesar de tudo, ainda caminham.
Ana Cristina. Basta, Gui. Estou com fome!
Guilherme José Purvin de Figueiredo, contista e dramaturgo, é professor de Direito Ambiental e Procurador do Estado/SP Aposentado, graduado em Direito e Letras pela USP, Doutor e Mestre, Pós-Doutorando junto à FFLCH-USP, desenvolvendo pesquisa no âmbito da Geografia, Literatura e Arte. Membro do IBAP. Escreve regularmente todo o dia 24 do mês ou em outros dias esparsos, quando lhe dá na veneta.






