Crônica de Natal de 2025
- Guilherme José Purvin de Figueiredo
- há 18 horas
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Guilherme José Purvin de Figueiredo

Eu devia ter três ou quatro anos e passava o Natal na casa de meus avós, que para mim tinha a dimensão de um sítio: um quintal vasto, uma parreira, uma oficina de carpintaria e, nos fundos do terreno, outras casas — da Esmeralda, da Esperança, da Cacilda — que pareciam prolongar indefinidamente o mundo. Era noite de véspera de Natal e a família estava reunida — meus pais, minha irmã, tios e primas. Às nove, depois do jantar, fui levado ao quarto de hóspedes para dormir.
Algumas horas depois, minha mãe entrou apressada, sacudindo-me: era preciso correr. O Papai Noel estava no telhado da fábrica de chuveiros! Fomos para o quintal. Ela apontava para o alto, bem perto da chaminé, e dizia, excitada: “Está vendo? Olha ele lá, conduzindo o trenó com as renas!”.
Eu olhava e não via nada. A angústia que senti não vinha do medo, mas da constatação de uma deficiência visual: era incapaz de enxergar algo que parecia evidente para os adultos.
Nos meses que se seguiram, voltei muitas vezes os olhos para o telhado da fábrica. Eu mesmo apontava para a chaminé e perguntava se o trenó era aquilo. Minha mãe respondia com uma naturalidade desconcertante: “É mesmo! O Papai Noel esqueceu o trenó!”. Não percebia que a resposta abria mais angústias. Se assim fosse, as crianças mais ricas já teriam recebido tudo. O trenó permanecia lá no alto, imóvel, vazio, abandonado, não por descuido, mas porque não havia presentes destinados às crianças pobres, sempre à espera.
Vem dessa época a minha sensação de impotência visual. Quando alguém ouve um pássaro num parque e aponta para a folhagem densa de uma árvore, indicando onde ele está, eu me esforço por esquadrinhar cada galho, cada ramo, já sabendo que se trata de um exercício inútil. Não distingo. Carrego uma lista extensa de limitações visuais — miopia, astigmatismo, moscas volantes, uma isquemia oftálmica ocorrida há cerca de quinze anos e, mais recentemente, uma catarata. Talvez por isso eu tenha aprendido a confiar mais na audição, no paladar, no tato e no olfato — sentidos que hoje orientam, com maior segurança, minhas relações políticas, sociais e amorosas.
Pensando no trenó vazio de presentes para as crianças pobres sobre o telhado da Lorenzetti, passei a alimentar um ideal: quando crescesse, iria montar uma creche, financiar a educação, a assistência médica e odontológica, o vestuário de toda criança abandonada na rua. Não levei a cabo o projeto, mas quase: ao me graduar na São Francisco resolvi seguir a carreira trabalhista, acreditando no ideal distributivista do direito do trabalho. Sem dúvida, o problema óptico persistia de forma grave. Levei pelo menos 15 anos até entender que esse ramo do direito servia mais aos objetivos dos acionistas da Coca-Cola e da Lorenzetti do que aos de São Francisco de Assis ou Karl Marx.
Por conta desse trauma infantil, acabei me aproximando de pessoas de pouca fé. Alguns materialistas estraga-prazeres queriam me fazer crer que o Natal é uma data criada pelos cristãos primitivos com a finalidade de substituir as festividades pagãs relacionadas com a chegada do inverno no hemisfério norte. A ideia de que Jesus Cristo existiu de fato e que nasceu em 25 de dezembro do ano 1 seria, por si só, um contrassenso, pois a era Cristã deveria iniciar-se no dia 1 de janeiro do ano zero. Além disso, nascer numa manjedoura, em meio a bois, burros e cabras, significaria risco certo de zoonose. Quanto ao Papai Noel, que minha mãe dizia chamar-se na verdade São Nicolau, esses comunistas vieram me dizer que se tratava de uma figura criada por publicitários da Madison Avenue para alavancar as vendas de uma bebida gasosa à base de noz de cola e folha de coca. Ora, se isso fosse verdade, a sede da empresa seria na Bolívia!
Recuso-me a crer que o dia do Natal seja um mito falacioso destinado a fortalecer os vínculos entre europeus em oposição aos judeus e aos muçulmanosl A festividade também não tem nada a ver com o colonialismo cristão contra os pagãos que comemoravam a data com base em elementos da natureza, o solstício de inverno. Tudo boato surgido na Albânia, onde até há pouco tempo não havia nem shopping center.
No dia de hoje devo entregar uma bonita crônica e não sair falando de guerra na Ucrânia, genocídio em Gaza, envenenamento por mercúrio na Amazônia ou no providencial Alzheimer do general golpista. Natal não é uma data comercial e o aumento de vendas de produtos supérfluos ou de suicídios de pessoas solitárias nesta época não passa de uma coincidência.
Hoje é dia 24, dia de celebrar o amor. 24. no jogo do bicho, corresponde ao veado. Veados e renas pertencem à família dos cervídeos. E Papai Noel é a Santa. Vamos, pois, homenagear nossos ídolos gays: Oscar Wilde, Marcel Proust, Cazuza, Edouard Louis, Jean Genet, Renato Russo, Fred Mercury, João Silvério Trevisan, Luchino Visconti, André Gide, David Bowie, Andy Warhol, Pierre Paolo Pasolini, Caio Fernando Abreu, Mário de Andrade... E, de quebra, celebrar o aniversário da cantora Anitta.
Mas se preferir, você pode também abrir a janela, olhar para o telhado da fábrica arruinada, em busca de um trenó. O que você verá certamente não serão veados nem renas, mas trabalhadores precarizados transportando um Papai Noel da Amazon pelas ruas de São Paulo.
Guilherme José Purvin de Figueiredo, professor de Direito Ambiental e Procurador do Estado/SP Aposentado, é graduado em Direito e Letras pela USP, Doutor e Mestre, Pós-Doutorando junto à FFLCH-USP, desenvolvendo pesquisa no âmbito da Geografia, Literatura e Arte. Membro do IBAP. Escreve regularmente todo o dia 24 do mês.










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