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Autorização do CONPRESP põe em risco vidas e história de bairro tradicional

Atualizado: 5 de dez. de 2023

- Guilherme Purvin / Lindamir Monteiro da Silva -


Alameda Ribeirão Preto, altura do n. 529 (Rua Garcia Fernandes) - Espaço de céu aberto do Rio Saracura. Foto: (c) Lindamir Monteiro da Silva.

A grafia "vareia", uns preferem referir-se ao Bexiga, como está dicionarizado. Outros, valorizando a pronúncia italiana, não hesitam em escrever do jeito que todos falam, Bixiga. A elite, torcendo o nariz, opta pelo nome oficial do cartório do bairro, "Bela Vista".


O Bixiga situa-se entre a Avenida Paulista, a Nove de Julho, a Brigadeiro Luiz Antônio (o famoso subidão do final da corrida de São Silvestre) e a Rua Rui Barbosa, mas o seu coração é a área confinada entre as ruas Dr. Seng e Almirante Marques Leão e a Praça 14 Bis.


Geograficamente, o bairro está localizado nas encostas do Vale do Saracura e sua fundação está inteiramente ligada à história dos afrodescendentes brasileiros. Aquela região onde se formaria o tradicional bairro tornou-se, com a abolição, um reduto dos negros recém libertos: "Ali, uma comunidade negra fortemente ativa, preservava seus costumes e seus laços com a tradição africana, em especial no culto religioso, nas manifestações culturais e musicais, antes mesmo da Proclamação da República. Isto porque, no momento em que a Princesa Isabel, assinou a Lei Áurea (1888) e declarou a sonhada abolição da escravatura, muitos negros foram para São Paulo se concentrando na Região do então Vale da Saracura que depois viria a se tornar o Bairro do Bixiga, considerado o primeiro bairro negro de São Paulo" (Samba do Bixiga: Tradição afro com sotaque italiano).




Do convívio dos negros com os imigrantes italianos nasceu este bairro tipicamente paulistano. Seus moradores foram imortalizados na literatura modernista de Antônio de Alcântara Machado, amigo de Oswald de Andrade e autor dos onze contos que compõem o livro "Brás, Bexiga e Barra Funda" com seus inesquecíveis personagens Gaetaninho, Beppino, Bianca, Carmela e tantos outros.


Para a geração que viveu a época áurea da MPB entre os anos 1950 e 1970, o grande embaixador do bairro foi o compositor, cantor e humorista João Rubinato, criador do personagem Charutinho e conhecido nacionalmente como Adoniran Barbosa. É dele o impagável "Um samba no Bixiga":


Domingo nóis fumo num samba no Bexiga / Na Rua Major, lá na casa do Nicola

À mezzanotte o'clock / Saiu uma baita duma briga

Era só pizza que avuava / Junto com as bracciola



O sambista Geraldo Filme, por sua vez, rendeu seu tributo ao bairro e lamentou a sua descaracterização gradativa pelo mercado imobiliário, com a canção popularizada na voz de Beth Carvalho:


Quem nunca viu o samba amanhecer,

Vai no Bixiga pra ver, vai no Bixiga pra ver

Bixiga hoje é só arranha-céu e não se vê mais a luz da lua

Mas o Vai-Vai está firme no pedaço, é tradição e o samba continua


O associado do IBAP Paulo Von Bruck Lacerda, Procurador do Estado/SP aposentado e talentoso músico e poeta, aliás, também prestou uma bonita homenagem ao bairro e à escola de samba Vai-Vai, o samba "Cinquenta Anos", que pode ser ouvido no Spotify. Acesse aqui o link para ouvir a canção.

Por sinal, a Vai-Vai, uma das mais famosas escolas de samba paulistanas, brilhou em 2004 nas passarelas com o samba-enredo "Quer conhecer São Paulo? Vem pro Bixiga pra ver":


Quem é Bixiga diz: Sou raiz / Sou tradição, o coração

Luz dessa cidade / Nasceu pra eternidade

Às belas margens do Rio Saracura

Chegaram os portugueses com amor e muita fé

Gente de todo lugar vinha pra negociar / Com os barões do café

Na calada da noite, negro fugia do açoite

E veio a abolição / Negro feliz então, se espalhou nesse chão



A ganância do mercado imobiliário, que já era denunciada pelo saudoso sambista Geraldo Filme, porém, chega agora ao ponto do descalabro. A chamada "Grota do Bixiga" é um manancial e um rio que se encontra hoje coberto, localizada nas encostas do espigão da Paulista e do Morro dos Ingleses.


Não é difícil para qualquer expert em geomorfologia e hidrologia atestar que as modificações nestas áreas poderão acarretar erosão e desmoronamentos, resultando em tragédia, já que são muitos os prédios residenciais situados nos quarteirões localizados na baixada das Alamedas Ribeirão Preto, Campinas, Pamplona e São Carlos do Pinhal e das ruas Almirante Marques Leão, Silvia, Dr. Seng e Rocha. Mais informações sobre a área podem ser obtidas no artigo "Um rio escondido em São Paulo: o Saracura", publicado no site São Paulo in foco.


Até hoje, a legislação ambiental - inequivocamente aplicável tanto para áreas rurais como urbanas - proíbe construções no entorno de olhos d'água, nascentes e margens de rios.


O art. 4º, inc. III, da Lei 12.651/2012, dispõe que constituem áreas de preservação permanente as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros.


O art. 3º, parágrafo único, incisos I e IV, da Lei 6.766/1979, por sua vez, proíbe o parcelamento do solo em terrenos alagadiços e onde as condições geológicas não aconselham a edificação.


O Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp, criado pela Lei Municipal n. 10.032/1985, é um órgão colegiado de assessoramento cultural ligado à estrutura da Secretaria Municipal de Cultura. Suas atribuições, definidas em Lei, e alteradas significativamente pela Lei nº 10.236, de 16 de dezembro de 1986 e pela Lei nº 14.516, de 11 de outubro de 2007, determinam que ele defina a área envoltória destes bens e promova a preservação da paisagem, ambientes e espaços ecológicos importantes para a cidade, instituindo áreas de proteção ambiental e formule diretrizes que visem à preservação e à valorização dos bens culturais.


Ocorre que, há alguns dias, o CONPRESP, contrariando os termos da legislação ambiental e urbanística, autorizou a realização de dois empreendimentos imobiliários dentro da área tombada da Grota do Bixiga. Estes empreendimentos situam-se na Rua Almirante Marques Leão, nº 708 a 756; e na Rua Rocha, s/n.




Paulo Von Bruck Lacerda afirma:


"Vivi parte da minha vida na rua Veloso Guerra, que começa na rua dos Franceses e termina na Rua Marques Leão, descendo a encosta do morro onde um pouco abaixo corre o rio Saracura Pequeno, pois o rio Saracura Grande corre no eixo da av 9 de Julho. Há uns anos atrás a construção de prédios na Rua Almirante Marques Leão desestabilizou a encosta do morro que tem arrimo de tijolos à vista e quase arrastou duas casas da Rua Veloso Guerra. Eu mesmo, quando reformei a casa de meu pai fiz uma grande amarração da estrutura, para prevenir problemas. Aquela região é toda tombada como ambiente urbano. Tanto que tive que preservar integralmente toda a fachada do imóvel tanto de frente quanto de fundos. Nosso país não preserva e não protege os ambientes urbanos históricos. Que, literalmente são tombados quando desabam pelo abandono e descaso".


Vale, pela sua relevância, transcrever em conclusão, na íntegra, a Nota de Repúdio elaborada pelo Coletivo Salve Saracura e subscrita por dezenas de entidades representativas da sociedade civil na região:




NOTA DE REPÚDIO - O BIXIGA SOB ATAQUE


O Coletivo Salve Saracura vem, por meio desta nota, demonstrar seu repúdio à aprovação, pelo CONPRESP - Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, de dois empreendimentos imobiliários dentro da área tombada da Grota do Bixiga. Os empreendimentos estão assim localizados: na Rua Almirante Marques Leão, nº 708 a 756, sob responsabilidade da empresa Corrientes Empreendimentos Imobiliários Ltda. (processo nº 6025.2019/0026124-6); e na Rua Rocha, s/n, sob responsabilidade da empresa Seng Administradora de Bens Ltda. (processo nº 6025.2019/0024432-5). Este último foi aprovado após a interrupção da transmissão ao vivo da reunião do referido conselho, tendo sido, portanto, sem transparência.

A autorização para que tais empreendimentos sigam com o processo de licenciamento é preocupante, pois viola frontalmente o disposto na Resolução CONPRESP nº 22/2002, responsável pelo tombamento do bairro do Bixiga. Segundo a referida Resolução, devem ser considerados:

(i) a importância histórica e urbanística do bairro da Bela Vista na estruturação da cidade de São Paulo, como sendo um dos poucos bairros paulistanos que ainda guardam inalteradas as características originais do seu traçado urbano e parcelamento do solo;

(ii) a permanência da conformação geomorfológica original nas áreas da Grota, do Morro dos Ingleses e da Vila Itororó́, cuja preservação proporciona a compreensão de como se deu a estruturação urbana do bairro;

(iii) a população residente na Bela Vista, cuja permanência e ampliação é fundamental para a manutenção da identidade do bairro.

Sabe-se que a Resolução de tombamento da Bela Vista não define, com efeito de lei, limites máximos de gabarito, no entanto – desde o Inventário Geral do Patrimônio Ambiental, Cultural e Urbano da Bela Vista (Igepac), desenvolvido entre 1983 e 1985, passando pelo tombamento em 1993 e sua reiteração em 2002, até mapas de diretrizes anexos à resolução – toda a documentação que embasa o tombamento indica um sentido de preservação da área da Grota que vai contra a verticalização. Em outras palavras, os estudos técnicos que justificaram a edição da Resolução 22/2002, embora desprovidos de força normativa, devem ser considerados como parâmetros interpretativos, sob pena de descaracterizar por completo o tombamento do bairro.

E, de acordo com o Igepac Bela Vista, recomenda-se para esta área uma legislação que impeça os gabaritos verticais de edificações que lá venham a ser construídas. Considerando a especificidade da região da Grota, esta área é “predominantemente residencial e ocupada horizontalmente” e definida sobretudo por suas características geomorfológicas, de modo que a verticalização “prejudica a legibilidade da topografia local (Item 6.3.7).

Apreende-se daí a importância de garantir a legibilidade da paisagem, das características geográficas e morfológicas da Grota, intimamente ligadas com a ocupação dessa área da cidade em termos sociais, culturais e ambientais. São exemplos as nascentes que desaguam no riacho Saracura Grande (atual Rua Cardeal Leme) e sua várzea registrada em mapas como Caminho do Saracura (atual Rua Almirante Marques Leão), os usos do espaço historicamente ligados a esses recursos naturais como o Quilombo que ali existiu e sua relação com o antigo Tanque do Reúno (atual Praça 14 Bis). Parte destas construções concretas e simbólicas ainda são perceptíveis, com alguma permanência do parcelamento do solo, por meio das construções em sobrados e, sobretudo, das encostas com vegetação que resistem e garantem a apreensão de que ali há uma formação geográfica específica relacionada a aspectos culturais específicos.

E, em que pese a robustez de tal fundamentação, causa ainda mais espanto os argumentos utilizados pelo CONPRESP para aprovação do empreendimento localizado na Rua Almirante Marques Leão, que, segundo o voto do conselheiro relator, seria importante para garantir a manutenção da população residente e a qualificação urbanística do bairro. Trata-se, na realidade, de argumentos falaciosos, pois o projeto arquitetônico não se presta à qualificar o bairro e muito menos a manter a população do Bixiga, cuja permanência está em constante ameaça por conta do avanço da especulação imobiliária.

Se o Plano Diretor Estratégico da cidade e a Lei de Zoneamento apontam para o adensamento e a verticalização de áreas centrais, no caso da área tombada da Bela Vista – com limites claros dados na Resolução CONPRESP nº 22 de 2002 – o mais restritivo deve prevalecer. O descrito na resolução (e ricamente explanado nos estudos que a embasam) deve ser levado em consideração por qualquer nova construção na área. Não só como dado do passado – ameaçado de apagamento sob o véu da “integração” – mas como dado real e concreto a ser respeitado e preservado.


A aprovação destes dois empreendimentos não é um fenômeno isolado: o bairro tem sido alvo preferencial do capital imobiliário especulativo, que coloca em risco – e risco de morte – o Bixiga que conhecemos, com seu patrimônio histórico, cultural e ambiental. Pelo que se observa, nem mesmo uma norma de tombamento, editada pelo próprio CONPRESP, é suficiente para limitar a voracidade da construção civil, que – ao contrário do que foi afirmado pelo conselheiro – não está preocupada com a qualificação do meio ambiente urbano, mas sim com a maximização dos lucros, em detrimento do direito à cidade.


É por isso que recebemos com preocupação a aprovação desses empreendimentos dentro da área tombada da Grota, abrindo-se um perigoso e irreversível precedente de descaracterização do tombamento do Bixiga, permitindo que outros empreendimentos sejam aprovados na região sob a justificativa de que as características originais do bairro, que motivaram o seu tombamento, já não existem mais.


Cabe ao CONPRESP, a despeito de sucessivas intervenções de uma gestão que entrega a cidade à especulação, fazer o trabalho que justifica sua existência: zelar pela preservação dos bens e áreas tombadas a partir daquilo que está definido e pactuado não só nas resoluções, mas no acúmulo de conhecimento que as criou.


Apoiam esta nota:

- ACHIROPITA: Paróquia Nossa Senhora Achiropita - ACESD: Associação Cultural Educacional e Social Dynamite - AL JANIAH: Espaço Político e de Cultura - APPIT: Associação dos Proprietários e Usuários de Imóveis Tombados - Arena Bela Vista - - Associação das Mulheres Unidas Venceremos - Associação Novo Olhar - Associação Zona Franca - Bateria 013 - Bixiga Sem Medo - Bloco do Fuá - Bloco Fuzuê SP - Bloco Rock Brasil - Box 62 - Cantina da Conchetta - Cantina Lazzarella - Cantina Roperto - Casa 1: Centro de Cultura e Acolhimento LGBT - Casa de Dona Yayá - Centro de Preservação Cultural da USP - Casa Mestre Ananias - Casa Rocha 259 - CAJU: Centro de Assistência Jurídica Saracura - Centro de Memória do Bixiga - Coletivo Cine Quebrada - Escadaria do Jazz - Espaço de Cultura Bela Vista - Espaço 13 - Instituto Bixiga de Pesquisa, Formação e Cultura Popular - Instituto Omindaré - Livraria Simples - Madame Satã - Marajó - Movimento Parque Augusta - Movimento Parque do Bixiga - MSTC - Movimento dos Sem Teto do Centro - MUMBI: Museu Memória do Bixiga - Mundo Pensante - Orquestra Sinfônica Jovem do Bixiga - Portal do Bixiga - Rádio Saracura - Rede Novos Parques - SAMORCC: Sociedade Amigos, Moradores e Empreendedores do Bairro Cerqueira César - Sol y Sombra - SODEPRO: Sociedade em Defesa e Progresso da Bela Vista - Tapera Taperá - Teatro Oficina Uzyna Uzona - Universidade Antropófaga - UMES SP: União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo - VAI-VAI: Escola de Samba


 

Projeto de construção exatamente onde existe hoje uma área verde ainda preservada.




Abaixo, o arquivo PDF com o inventário da árvores que serão sacrificadas, caso o projeto venha a ser realizado: de um total de 26, 25 delas seriam cortadas.

 

Guilherme Purvin é escritor e advogado, coordenador geral da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil - APRODAB.

Lindamir Monteiro da Silva é geógrafa e advogada, associada ao IBAP.



 

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2 Comments


Ricardo Antônio Lucas Camargo
Ricardo Antônio Lucas Camargo
Feb 14, 2021

Era comum, até o final do século passado, dizer-se que o Brasil era um país "abençoado", porque não era castigado pelas catástrofes naturais comuns a outros lugares, como terremotos, ciclones, erupções vulcânicas e outros que tais, e havia uma anedota algo preconceituosa no sentido de que Deus compensou toda esta proteção com o "povinho" que ali colocaria.

Se alguém tinha dúvidas acerca dos impactos ambientais da redução do solo a sua dimensão mercadológica, o comprometimento dos mananciais hídricos e das matas em seu entorno, e do que isto pode significar em termos da habitabilidade dos espaços - ingressando, aqui, no pior, a despeito de adequado, dos fundamentos para se defender a preservação ambiental, o utilitário -, a redução da capacidade…

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Madeleine Hutyra
Madeleine Hutyra
Feb 14, 2021

Importante alerta contra a aprovação dessas construções e pelo conteúdo de informações históricas, culturais e ambientais. Parabéns aos autores, Lindamir Monteiro da Silva e Guilherme Purvin, pelos ensinamentos e pela iniciativa !!

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