-LINCOLN SECCO-
O desastre político do final de 2018 ainda é tão impactante que nenhum estudo aprofundado foi possível até agora. Todos os dias são produzidas excelentes análises em artigos de jornal, revistas, blogs, vídeos, entrevistas; a cada momento comentamos a mais recente declaração estapafúrdia; aqui e ali se avança na caracterização do governo; mas, enfim, as pesquisadoras e pesquisadores no Brasil ainda tateiam, arriscam e se indagam sobre como foi possível tamanha regressão em nossa cultura política.
Coube a um intelectual argentino escrever o primeiro livro de fôlego que contribui para explicar o fenômeno bolsonarista. A vitória de um candidato de extrema direita nas eleições brasileiras de 2018 está longe de ser um mero acidente histórico. E é isto que o novo livro de Ariel Goldstein demonstra com uma miríade de fontes jornalísticas, impressões de viagem, entrevistas, conversas com pessoas comuns e documentos históricos. É raro que um livro escrito no calor da hora consiga dar um sentido para acontecimentos que parecem aleatórios.
O autor conseguiu unir a narrativa histórica e a imaginação sociológica; pesquisou in loco, estabeleceu comparações e buscou explicar as razões da recente onda internacional de direita depois de um ciclo de coalizões governistas de centro esquerda na América Latina. A pesquisa abrangeu a própria vida cotidiana sem descuidar da análise das macroestruturas políticas. Ariel Goldstein escreveu uma obra que já é uma primeira e necessária contribuição a uma bibliografia que ainda sequer se estabeleceu.
Como ele diz, não é a primeira vez na história brasileira que alguém com um discurso exótico sem sustentação partidária chega ao poder. Já houve os casos dos presidentes Jânio Quadros ou Fernando Collor de Mello. Mas o primeiro venceu depois de uma fulminante carreira como vereador, prefeito e governador em São Paulo e ainda foi apoiado pela União Democrática Nacional (UDN), um dos pilares do mundo político da época. Collor tinha sido governador de Alagoas e era filho de uma larga tradição familiar na vida política. O pai tinha sido Senador e o avô foi Ministro do Trabalho do Governo Provisório de Getúlio Vargas depois da Revolução de 1930.
Jair Bolsonaro não é exatamente um iniciante de fora do sistema político. Nascido numa pequena cidade do interior paulista, sem nenhuma vivência cultural significativa, ele foi político profissional desde 1988 e teve um mandato como vereador no Rio de Janeiro e sete como deputado federal. Foi antes oficial do Exército. Ao mesmo tempo ele nunca foi um político influente. Nunca saiu do baixo clero de Brasília e mesmo como militar teve carreira curta e marcada por insubordinação e prisão disciplinar. Formado em 1977 chegou a tenente e tornou-se capitão na reserva em poco mais de dez anos de atuação (ou dezesseis, contados os anos de aspirante). Esteve longe de pertencer às elites do poder civil ou militar. Estava, assim, talhado para representar o papel do homem médio bem sucedido.
A eleição de um presidente medíocre em suas relações, destemperado em suas reações e conhecido pelas declarações inconvenientes em defesa da tortura, da pena de morte e, mais recentemente, da homofobia, misoginia e racismo é algo inédito na história brasileira.
É verdade que não é a primeira vez que movimentos de extrema direita de massas tenham existido no Brasil. Embora fosse pequeno e restrito à minoria da comunidade alemã do sul, o Brasil teve o maior partido nazista fora da Alemanha. Entre 1932 e 1938 a Ação Integralista de Plínio Salgado mobilizou centenas de milhares de pessoas em torno de uma modalidade de fascismo. Mas também é fato que quando ele manteve um partido entre 1945 e 1964, não teve qualquer apelo eleitoral.
Mobilizações de massas de direita também ocorreram durante os anos 1930 e nas vésperas do golpe civil-militar de 1964. Por isso, os protestos de junho de 2013, depois de capturados por uma pauta de direita, e as mobilizações pelo impeachment em 2016 já tinham seus antecedentes históricos.
Mas nada disso retira da ascensão de Bolsonaro um caráter inédito. Em nenhum outro momento da história a Esquerda enfrentou um candidato que ameaçava exterminá-la e que dispunha de um ativismo em grande parte voluntário. Desde as greves operárias de 1977 e do surgimento do PT jamais um movimento de massas autoconfiante da direita tinha surgido.
O fenômeno dificilmente pode ser repetido na Argentina, aposta o autor, já que o processo militar deixou um legado de baixa tolerância social à violação dos direitos humanos. No Brasil as Forças Armadas reconquistaram apoio popular. É preciso lembrar que o Exército brasileiro se tornou a última instituição que não foi desacreditada pela operação Lava Jato. O juiz Moro e seus seguidores lideraram a investigação e condenação de lideranças de diversas instituições. A prisão de grandes empresários vinculados ao financiamento de campanhas, de líderes proeminentes dos principais partidos e o impedimento de Dilma Roussef provocaram o desmoronamento de todo o sistema político.
O próprio poder judiciário ficou sob suspeita pelo uso de delações premiadas, pelas disputas entre juízes contra os tribunais superiores, pela seletividade nas punições, por violações processuais e, finalmente, pelo comportamento parcial do juiz Moro, aqui exposto pelo autor.
As comparações internacionais que Goldstein busca para explicar o fenômeno Bolsonaro não esgotam a particularidade histórica de um movimento de massas enraizado na subcultura autoritária brasileira. Na América Latina não há nada igual. Pode-se citar o caso da Guatemala ou fora dali a Polônia, Hungria, Itália ou Filipinas. São todos países sob Governos autoritários que dominam sociedades polarizadas e divididas sem romper com os rituais da Democracia, ainda que os reduzam a formas vazias de conteúdo. A Turquia parece ser um caso assim. Mas mesmo isso não é seguro que se reproduza no Brasil. Nos Estados Unidos a ascensão de Trump foi um modelo para o movimento de Bolsonaro, com o uso das redes sociais, de fake news e discurso anti corrupção. Mas as semelhanças acabam aí. Como diz Ariel Goldstein o Brasil não tem os contrapesos moderadores dos Estados Unidos.
Os conservadores tradicionais, as autoridades políticas e judiciais e a imprensa monopolista brasileira tentam a todo momento normalizar a situação, mas recebem em resposta sucessivas ameaças e se surpreendem a cada medida anunciada pelo novo governo. A primeira escolha de Bolsonaro para o Ministério das Relações Exteriores chocou os círculos conservadores do próprio Itamarati porque o escolhido é um seguidor de Olavo de Carvalho, um youtuber envelhecido com ideias bizarras sobre política externa como as de que a ONU apoia o terrorismo, há uma conspiração comunista global e gay e o FMI é de esquerda.
O movimento que levou Bolsonaro ao poder tem diversas camadas históricas que transparecem em suas bases sociais e geográficas. A tradição autoritária e a memória da Ditadura Militar são muito bem explicadas pelo autor deste livro e tiveram graves repercussões nos setores médios; já o apelo ao público evangélico das grandes e médias cidades retirou parte do eleitorado popular do PT, mesmo nas grandes e médias cidades do nordeste.
Contudo, Bolsonaro não representa apenas a invocação do passado militar, mas de uma ala específica daquele período: a chamada “linha dura” dos oficiais de médio escalão responsáveis por torturas e desaparecimentos. Ao abandonar o estatismo e abraçar o neoliberalismo radical, ele não pode reivindicar a fase mais desenvolvimentista da ditadura: a do governo do General Geisel que sofreu oposição de setores empresariais.
O movimento bolsonarista tem o objetivo de exterminar a esquerda e destruir o “lulismo” e o petismo. Paradoxalmente, ele não pode existir sem mobilizar seus seguidores permanentemente contra o PT.
A analogia de Ariel Goldstein é bastante sugestiva: Bolsonaro representa o maior desafio da história brasileira ao nacional estatismo. Ao contrário de outras mudanças de regime no passado, sua vitória pode representar um movimento regressivo como o da Revolución Libertadora de 1955 e, simultaneamente, a tentativa revanchista de Pedro Eugenio Aramburu desperonizar a sociedade argentina.
O movimento bolsonarista tem o objetivo de exterminar a esquerda e destruir o “lulismo” e o petismo. Paradoxalmente, ele não pode existir sem mobilizar seus seguidores permanentemente contra o PT. O partido conseguiu sobreviver e a memória de Lula está solidamente enraizada no interior do nordeste e nas populações mais pobres e não é impossível que se mantenha numa subfrequência política invisível, mas capaz de germinar novas formas de militância na esquerda, como sucedeu ao peronismo na Argentina.
Por outro lado, Bolsonaro ingressou numa legenda fisiológica que elegeu a segunda bancada da Câmara de deputados e tenta se tornar um partido de massas. Mas até agora isso não aconteceu. Apesar da experiência integralista aqui citada, a classe média brasileira, base militante da extrema direita, não tem uma tradição organizativa autônoma e permanente como os trabalhadores sindicalizados e o empresariado.
A ideologia do movimento é um conjunto irrelevante de ideias bizarras apoiado em youtubers sem reconhecimento acadêmico, artístico ou cultural e, por isso mesmo, baseado no anti intelectualismo do homem médio, informado por teorias conspiratórias, dogmas religiosos e preceitos morais. As cenas em que o presidente eleito fez suas primeiras declarações são um exemplo disso: ele promoveu um discurso duvidoso sobre a Constituição e um culto evangélico improvisado. Sobre a mesa, entre uns poucos livros, ele exibiu uma obra de Olavo de Carvalho.
Que o leitor não se assuste: Olavo de Carvalho já era visto pelos seus seguidores como o maior filósofo da atualidade, embora defenda que a Lei da Inércia é falsa e Darwin é o pai do nazismo. Agora ele atinge a condição de “teórico” oficial do presidente da República do Brasil.
Entender como um movimento de massas foi capturado por um militar medíocre de ideias bizarras não é fácil. Mas este livro de Ariel Goldstein o conseguiu. De maneira convincente e com uma escrita elegante que cativa o leitor do início ao fim do livro.
Lincoln Ferreira Secco é Professor de História Contemporânea da FFLCH – USP e dos Programas de Pós-Graduação em Integração da América Latina e de História Econômica.
Resenha clara, anima a conhecer o livro