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As pressões sobre a imprensa – desde sempre

  • Foto do escritor: Revista Pub
    Revista Pub
  • 16 de ago.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 18 de ago.

-BERNARDO LINS-


Uma das reclamações mais frequentes em conversas com jornalistas é o desânimo com o momento que a imprensa está vivendo e que eles veem como uma crise da profissão. É uma avaliação bastante realista e os motivos econômicos estão à vista. O crescimento das redes sociais e a mudança de comportamento do público roubaram dos veículos tradicionais uma fatia importante de consumidores e, consequentemente, de receita de publicidade.


O modo como os jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão operavam era algo que em economia chama-se de mercado bilateral. A empresa oferece uma mercadoria para reter um cliente e “revende-lo”. Bancos de varejo fazem isso: atraem o cliente com a segurança da conta corrente e com as parcas remunerações de aplicações conservadoras para, assim, retê-lo e revende-lo a operadoras de seguro, de cartões e de linhas de crédito. Cliente credor não dá lucro, cliente devedor sim. E a mídia também: atraía o cliente com programas e notícias para compor a audiência e revende-la aos anunciantes. Espectador eventual não dava lucro, o espectador fidelizado, colado no veículo, sim.


Era aquela imagem da família na sala de jantar grudada no rádio nos anos trinta, ou na tevê nos anos sessenta. Era a lembrança que temos de nossos pais e avós recebendo o jornal de manhã cedinho para folheá-lo demoradamente no café, ou leva-lo embaixo do braço ao trabalho. Indústrias e lojas repassavam os anúncios a essa massa de consumidores passivos, formando o gosto pelas marcas e produtos. E pagavam o espaço publicitário a peso de ouro.


A verba de publicidade representava algo como dois por cento do PIB na maior parte dos países. Esse “bolo publicitário” era repartido de modo bastante estável entre os veículos, um mercado grandão, um verdadeiro transatlântico. E os jornalistas tinham a oportunidade de trabalhar para essas empresas de comunicação alcançando, em alguns casos, algo raros, belos salários, uma longa carreira, o respeito do público e a admiração, e medo, das fontes. Mas, com a força e a fama, vinha o risco. Em alguns casos, mesmo sem perder a vida ou a saúde, bons profissionais eram dizimados pelos empregadores de uma hora para outra.


Um episódio hoje esquecido, mas que há meio século foi muito comentado, envolveu um jornalista catalão, Jaume Miravitlles, cuja vida foi uma gangorra de aventuras.



Portrait Of Jaume Miravidles Salvador Dali - domínio público
Portrait Of Jaume Miravidles-Salvador Dali - domínio público

Miravitlles nasceu na pequena cidade de Figueres, próxima a Barcelona, em 1906. Ainda estudante, foi preso pela ditadura de Primo Rivera e fugiu após um ano de detenção, exilando-se na França, onde se formaria em engenharia. Bonitão, fez amizade com Buñuel e atuou em O Cão Andaluz e A Idade de Ouro. Do círculo de amigos da juventude, Salvador Dali e André Malraux o frequentariam por toda a vida.


Voltou ao país natal em 1930 e aderiu ao governo regional catalão durante a Guerra Civil espanhola. Com a derrota para as forças de Franco, Mitavitlles, que era o comissário de propaganda do governo, conseguiu escapar e refugiar-se mais uma vez na França. Por um tempo viveu aquela vida de refugiado, passando apertado, ajudando outros exilados que chegavam da Espanha e publicando uma revista em catalão.


Em 1941, deixa a Europa e migra para o México, seguindo o caminho que conhecemos graças ao maravilhoso filme Casablanca, estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman: Argel, Casablanca e dali para o continente americano. Quem não lembra de Ilsa Lund encostando no piano do bar de seu amante e pedindo para ouvir “As Time Goes By”?


Chegaria nos EUA ao final da guerra, em 1945, para empreender uma carreira espetacular de jornalista e empresário de mídia. Suas colunas sobre cinema americano e política internacional eram reproduzidas em jornais por toda a América Latina, inclusive em O Globo, aqui no Brasil. Morou em nosso país por um par de anos e pouco se sabe das suas estripulias locais, mas apareceu eventualmente em notinhas de coluna social. Editava também um suplemento dominical, “Hablemos”, cuja tiragem de 500 mil exemplares semanais era distribuída em jornais de uma dezena de países latino-americanos. Em paralelo, mantinha uma extensa rede de amigos e compatriotas, divulgando a cultura catalã e alimentando o sonho da república autônoma.


E então John F. Kennedy é assassinado. A investigação complicada e o drama coletivo disparam uma miríade de conjecturas e teorias conspiratórias. Miravitlles escreve uma coluna analisando o episódio e suas implicações políticas. Insinua que o homicídio poderia ter sido encomendado por empresários norte-americanos do setor de energia. Um desacerto. Em questão de dias sua vida, sua carreira bem montada, seu círculo de relações, seus contratos, tudo vira pó. O poder econômico vinga-se de modo brutal, fechando todas as portas, reduzindo-o ao mais completo anonimato.


Miravitlles empreende então o caminho de volta a casa. Após quase 25 anos de exílio, retorna ainda em 1963 à Espanha e aceita as condições draconianas que o governo de Franco irá lhe impor. Moraria fora da Catalunha por um tempo, escreveria sob pseudônimo, manteria uma atividade anódina por uma década. Pelo menos, diria, os filhos veriam a pátria e apreciariam sua cultura. A partir de 1971 começaria a publicar seus livros autobiográficos. Morreria em 1988, em Barcelona, reabilitado pela comunidade catalã.


Teve sorte. Centenas de jornalistas, mundo afora, receberam, ano após ano, um tratamento muito mais cruel, perseguidos, difamados, torturados, mortos. Temos, também no Brasil, nossos mártires. Da prisão de Graciliano Ramos ao assassinato de Tim Lopes, passando pela tortura e morte de Vladimir Herzog, não foram poucas as vítimas do Estado Novo, da ditadura, do tráfico, das milícias, da violência policial, da turba. Cada um vale uma história e uma homenagem. Em tempos de internet, os mais de duzentos jornalistas mortos na guerra em Gaza demonstram que ser repórter é, mais do que nunca, uma atividade que exige coragem.



Bernardo Lins é doutor em economia pela UnB e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do IBAP. Escreve todo o dia 16 do mês na Revista PUB.


  

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