Os riscos da linguagem dos riscos
- Revista Pub

- 16 de jun.
- 5 min de leitura
-BERNARDO LINS-
Todos aprendemos que empresas, na sua acepção mais egoísta, têm o objetivo de lucrar. Mas sabemos também que, ficando no puramente negocial, não é apenas isso. Empresas, e outros institutos como contratos e instrumentos financeiros, também existem para administrar riscos.

Riscos fazem parte da vida pessoal em todas as dimensões: financeira, operacional, emocional, ideológica, até da futilidade. Como saber, aos vinte anos, se os estudos que fizemos, o parceiro amoroso que escolhemos, a cidade em que decidimos residir, a profissão que abraçamos ou as dívidas que assumimos apontarão para um bom caminho dali a dez, vinte ou cinquenta anos?
No limite, todos vamos morrer e temos que administrar esse confronto final com sagacidade. Fala-se que a pessoa de fibra se preocupa acerca de como irá morrer e a resposta é, sempre: “com a maior honra possível”. Já a temerosa pergunta-se quando irá morrer e a resposta é, sempre: “o mais tarde possível”. Estamos entre esses dois polos e a busca de um meio-termo entre audácia e precaução é a tarefa de cada um. O dia final, porém, é incerto e muitas vezes decorre de uma situação fortuita. Olha aí o risco maior.
Na vida empresarial não é diferente. Projetos podem tropeçar em limitações técnicas insuperáveis, os bens de capital estão sujeitos a desgaste, falhas ou quebras, os ativos financeiros podem ser corroídos pela inflação, por erros de operações ou por oscilações econômicas, as pessoas podem sofrer acidentes de trabalho ou enfrentar doenças ocupacionais, enfim, há uma infinidade de desafios à frente de qualquer empreendimento. Por isso a linguagem empresarial é, em grande medida, a linguagem dos riscos.
Incerteza, nos ensinava Keynes em sua obra monumental, a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, é aquilo que imaginamos que possa acontecer. Risco é a sua quantificação. Se não lograrmos estimar esse risco, essa chance de que algo aconteça, seremos corroídos pelo dilema de que decisões tomar. Seremos uma maria-vai-com-as-outras, com o perdão da expressão grosseira. Afinal, se não sabemos que riscos enfrentamos, olhamos para os lados e vamos junto com os demais. Se tudo der errado, estaremos em boa companhia, ou pelo menos com alguma companhia.
Nas últimas décadas, as empresas desenvolveram modelos cada vez mais sólidos de análise de conjuntura e avaliação de riscos. Eles fazem parte do planejamento e da tomada de decisões em vários estágios do negócio. Ao examinarmos tendências de mercado, ao desenharmos processos bem estruturados, ao conduzirmos periodicamente ciclos de melhoria contínua destes, ao incorporarmos inovações, ao compartilharmos o conhecimento e as decisões entre todas as pessoas ligadas ao empreendimento, estamos continuamente delimitando e mitigando riscos.
Era previsível, então, que essa visão de riscos acabasse por ser incorporada às leis. A relação entre fato e dano, ao ser calibrada pelo risco, dá uma dimensão do custo que a sociedade enfrenta ao licenciar o empreendimento. É também um modo de fazer com que a sociedade compreenda as incertezas que, inevitavelmente, envolvem qualquer atividade empresarial ou mercantil. Como vamos regulamentar uma atividade econômica se não compreendermos os impasses que enfrenta?
A legislação ambiental é um exemplo. Os especialistas nessa área sabem bem que qualquer empreendimento que implique em intervenção no meio ambiente é obrigado a pleitear uma licença para cada etapa do seu desenvolvimento e operação. O licenciamento ambiental depende de estudos em que a possibilidade de incidentes é detalhada e os riscos associados são dimensionados. O estudo de impacto ambiental envolve não apenas os efeitos sobre a configuração física da área afetada e sobre o ambiente biológico ali presente, mas igualmente os efeitos sociais e culturais. Esses efeitos devem ser estimados numericamente e procedimentos corretivos, mitigadores ou de adaptação devem ser apontados.
A base para essas obrigações encontra-se no art. 8º, inciso II, da Lei nº 6.938, de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. O Conama, Conselho Nacional do Meio Ambiente, regulamentou o conteúdo desses estudos, conforme o porte e a complexidade do empreendimento a ser licenciado. Na sua Resolução nº 1, de 1986, o Conama confirma os critérios gerais previstos na lei. Regulamentos específicos de cada órgão regulador ou de concessão de crédito, e há dezenas deles, detalham o modo como esses riscos devem ser estimados e apresentados.
Um procedimento bastante usual é considerar três grandezas: a probabilidade de ocorrência de cada dano, a ordem de grandeza desse dano e o custo associado ao dano. Sua combinação resulta no risco precificado, um cálculo muito interessante para orientar o empreendedor, mas que em certas situações carrega um peso moral importante: como estimar, por exemplo, o custo da morte de uma pessoa, da contaminação de uma área, da alteração do clima? Há uma perda não estimável de sofrimento, de dor, de frustração, nestes e em vários outros episódios.
A apresentação de um estudo de impacto ambiental tecnicamente consistente e veraz oferece ao regulador os elementos para um licenciamento fundamentado. Nesses casos, o empreendimento, se conduzido criteriosamente e em obediência aos estudos, terá tudo para dar certo. O estudo de impacto ambiental implica, nesse sentido, em um compromisso contratual com a sociedade.
Risco, porém, não é uma coisa só. Há diferentes riscos e diferentes abordagens para tratá-los. Há riscos intoleráveis para a empresa, como falhas ou incidentes com equipamentos, erros no relacionamento com clientes ou equívocos estratégicos, cuja eliminação é consistentemente buscada. Mas há outros, associados a circunstâncias de mercado, à adoção de inovações, ou a uma (des)obediência elástica a obrigações regulatórias, que o empreendedor administra com alguma leniência ou, no bom jargão mercadológico, com apetite pelo risco.
Será que, em casos como esses, o empreendedor não tende a ver o licenciamento mais como um rito de passagem do que como um compromisso? Politicamente, temos visto movimentos de liberalização das restrições ambientais e dos procedimentos regulatórios apontando para essa possibilidade. A aprovação, no Senado, do Projeto de Lei nº 2.159/2021, que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, é um indicativo.
Nesses casos, o responsável pela operação sabe o que deveria fazer se agisse de modo conservador, mas vê uma oportunidade de ganhos se der um passo adiante e assumir a possibilidade de uma perda. Em geral, acredita que essa possibilidade é pequena e está sob controle. Mas, e se não for assim? E se, de fato, o pior acontecer?
Viveremos, nesse caso, o risco que o legislador assume ao usar a linguagem dos riscos. Se o empreendedor cumpriu todas as obrigações administrativas do regulamento, realizou os estudos correspondentes, obtendo em cada etapa do empreendimento o licenciamento correspondente, o que ocorreu? Como punir o responsável? É evidente que a realização de estudos não o qualifica para a impunidade e sua responsabilidade pelo dano continua a ser tão objetiva como deveria sê-lo. Mas, como no futebol, operar dentro das regras do jogo é uma ótima linha de defesa. E é difícil demonstrar que um deslize, uma esticada da bola, uma faltazinha maldosa, um acordo com o árbitro, tenha ocorrido.
O risco de assumir a linguagem dos riscos está nessa dimensão. Apesar de tornar o texto jurídico tecnicamente compreensível e politicamente palatável, a linguagem dos riscos é a linguagem do empreendedor. Reflete sua ideologia de lucratividade, de apetite pelo risco, de aposta na oportunidade. Dimensões meritórias enquanto tudo der certo, mas explicativas quando algo dá errado. Legislações que preveem estudos de risco em geral mostram-se particularmente lacônicas ao tratar de punições. A lei fala por si.
Bernardo Lins é doutor em economia pela UnB e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do IBAP. Escreve todo o dia 16 do mês na Revista PUB.










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