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Chuvas, trovoadas e instituições

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    Revista Pub
  • 16 de jul.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 23 de jul.

-BERNARDO LINS-


No fim-de-semana de 5 a 7 de julho, uma enchente de grandes proporções tomou de surpresa o estado do Texas, nos EUA. Teve início com uma tempestade que despejou, no dia 4 de julho, festa da independência dos EUA, mais de 150 mm de chuva em apenas três horas. O solo seco e pouco permeável facilitou a acumulação e alastramento das águas. Os rios da região central do estado chegaram, em alguns casos, a subir dez metros, submergindo áreas urbanas extensas. 


Imagens de satélite mostram Camp Mystic antes e depois da enchente (Maxar Technologies)
Imagens de satélite mostram Camp Mystic antes e depois da enchente (Maxar Technologies)

Já se contabiliza mais de uma centena de vítimas. O episódio mais doloroso até o momento foi o da destruição de colônias de férias na área do rio Guadalupe, a noroeste da cidade de San Antonio, vitimando dezenas de crianças. Em uma destas colônias, Camp Mystic, havia 27 vítimas identificadas e 11 desaparecidos até o final da semana, a maior parte de meninas. 


Não é um filme muito diferente dos que vemos com frequência aqui no Brasil. A combinação de construções situadas na mancha da inundação com rotas de fuga precárias, de chuvas intensas que se tornaram mais usuais em decorrência das mudanças climáticas, do uso do solo para ocupação urbana, com redução importante da cobertura vegetal nativa e perda de capacidade de absorção da água, é recorrente na análise dessas tragédias. Nos condados mais atingidos pela enchente nos EUA, o roteiro não se afasta desse padrão.


O fato novo citado nas reportagens é a perda de capacidade de acompanhamento dessas precipitações, devido ao desmonte promovido por Donald Trump no National Weather Service, o departamento federal responsável pelas previsões meteorológicas nos EUA. Aparentemente, embora a meteorologia tenha sido capaz de antecipar o desastre, sua divulgação às comunidades foi muito deficiente. A ocorrência da enchente durante a noite, combinada com um sentimento de indiferença aos escassos alertas às comunidades atingidas, pode ter agravado o quadro.



Trump vem conduzindo uma política drástica de redução do tamanho do Estado, que combina incentivos a aposentadorias antecipadas e demissões voluntárias com medidas mais dramáticas de fechamento sumário de departamentos inteiros da administração pública. Cerca de 130 mil servidores já foram afastados e a Suprema Corte deu sinal verde para novas demissões. O preço em vidas e em danos materiais, pago em Kerr, Kendall e outros condados da região central do Texas, pode estar relacionado com essa política. 


A intenção de Trump é bastante clara e o próprio presidente a explicitou: “o governo deve fazer menos”. Há um componente ideológico nessa política, de minimizar o papel do Estado, de não colocar dinheiro em atividades que beneficiem imigrantes, estrangeiros ou populações de outros países, de desmontar atividades culturais, educacionais, beneficentes ou de apoio a comunidades. Há também a intenção de conter as despesas públicas em linha com reduções de impostos e taxas. Desse modo, nos moldes da lógica econômica convencional, mais dinheiro ficaria nas mãos do contribuinte, ajudando a alavancar investimentos e consumo privados. 


Estará Trump certo ou errado ao quebrar essas instituições? Não é difícil responder. É provável que sua política de espancar a burocracia do governo no atacado seja incorreta e cruel. Bate a torto e a direita, indiscriminadamente, fomentando a prepotência dos maus gestores públicos e criando um clima de temor entre os servidores. Põe no olho da rua pessoas que se dedicaram com afinco a atividades de mérito. Trata-se de um movimento cuja única vantagem será, provavelmente, a da visibilidade junto ao eleitor. 


E esse eleitor trumpista, por enquanto, apoia a redução drástica dos gastos públicos. Para ele, é sempre bom ter mais dinheiro em suas mãos e deixar as despesas, quando inevitáveis, para os outros. Trata-se da comunicação política explorando o lado ganancioso e individualista que todos carregamos em alguma medida, ainda mais se pertencermos às classes mais abastadas. 


Por outro lado, nem toda instituição é saudável para o país, é eficaz na sua condução e apresenta resultados que promovam o bem-estar e os avanços sociais e econômicos adequados ao momento. Esse aspecto não passa despercebido ao eleitor. Há uma miríade de pequenas e grandes despesas que leva o cidadão a se perguntar: como assim? Para que?


Daron Acemoglu, um economista de renome ligado à chamada “nova economia institucional”, destaca que um aspecto básico ao se analisar a qualidade de uma instituição é avaliar se esta é extrativa, ou seja, se captura parte do dinheiro público para redistribuí-lo a uma minoria econômica ou a uma elite que se beneficie intensamente do mesmo. 


Esse benefício pode se dar de várias formas, não raro beirando a imoralidade: subsídios à produção de um setor econômico garantidos ou custeados pelo erário, salários exagerados ou “fringe benefits” para determinadas categorias de servidores, obrigações de fazer ou não fazer que garantam a sobrevivência de certas atividades, vedações que retardem avanços de tecnologia prejudiciais a certas denominações profissionais ou grupos empresariais, direitos de gestão privada sobre recursos públicos, contratos preferenciais ou exclusivos, segredo na alocação e administração de verbas e por aí vai. Não há necessidade de exemplos, sabemos bem do que se trata, inclusive no Brasil.


Instituições extrativas são danosas, mas extremamente difíceis de combater. Tal como os gremlins, nascem como bichinhos fofos, benevolentes, bons para a sociedade, e tornam-se monstros ao se empapar de interesses particulares. Instituições, em outras palavras, podem ser corroídas de dentro para fora. A minoria beneficiada luta com unhas e dentes para preservar seu privilégio. 


Ao se oferecer para passar o rodo e lavar o governo, Trump não ajusta o sistema, destroça principalmente aquelas instituições essenciais à saúde política dos EUA e que estão se mostrando extremamente frágeis. Dizimou dezenas delas, com canetadas sumárias e comentários sarcásticos, na enxurrada de decretos presidenciais que derramou sobre um congresso domesticado. 


O eleitor americano vai levar um tempo para perceber, aos poucos, que ficou na chuva e não tem uma marquise para se proteger. Romper a ordem institucional é deixar o cidadão indefeso diante das fatalidades da vida, das malícias da política e da cobiça dos prepotentes. E rompê-la brutalmente, sem aviso prévio, impede que aqueles que defendem instituições necessárias possam dar um freio a esse ímpeto, preservando as bases da administração pública e da saúde política.  


Não há final feliz. Reconstruir e reorganizar mais adiante algo que se desmontou e, afinal, descobriu-se que era importante, demanda esforços e custos enormes. Por ora, parece que os EUA abrem a brecha para entrar no conto da aia. Não temos o direito de olhar tais movimentos como algo distante. É possível que por aqui sejamos, sem nos darmos conta, espectadores de uma dança dos vampiros que se dirige a um corredor semelhante. 


Bernardo Lins é doutor em economia pela UnB e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do IBAP. Escreve todo o dia 16 do mês na Revista PUB.


1 comentário


Sebastião Staut
Sebastião Staut
20 de jul.

Excelente texto, Bernardo

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