A população precisa crescer?
- Revista Pub

- há 4 dias
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-Bernardo Lins-
Reler várias vezes a estratégia de segurança nacional do atual governo Trump, lançada em novembro deste ano, é um exercício de contínuo e assustador aprendizado para nós, que agora estamos oficialmente sob vigilância, diplomática ou mais. E alguns detalhes que passam despercebidos em uma primeira leitura tomam feições na medida em que passamos de novo (e de novo...) pelo texto desse édito imperial.
É previsível que essa carta de intenções gritada ao mundo reafirme os valores essenciais da campanha eleitoral de Trump, a convicção supremacista, o negacionismo ambiental, o fechamento de fronteiras, a reindustrialização forçada dos EUA. Curioso é ler, nesse rol de fundamentos, o chamamento a uma expansão das famílias norte-americanas: “Queremos que nossos cidadãos, empregados e bem remunerados – ninguém deixado à margem – se sintam realizados por saber que seu trabalho é essencial à prosperidade da nação e ao bem-estar de indivíduos e famílias. Isto será alcançado com números crescentes de famílias tradicionais e fortes, que criem filhos saudáveis”.
Há várias leituras possíveis para esse chamado. Uma é a retomada de uma narrativa bíblica tradicionalista e o destrato a cem anos de luta por direitos civis de mulheres, afrodescendentes e minorias. Uma outra é o apelo ao interesse econômico.
Na narrativa econômica, a competição está no cerne do crescimento da renda. Os ganhos de produtividade proporcionam musculatura às empresas para que sejam vencedoras no mercado. Seus competidores se desdobrarão para manter-se em igualdade de condições e irão investir em inovação para tornar-se igualmente produtivos e lutar por sua fatia de lucro. Essa corrida sem fim, em que o vislumbre da linha de chegada se prolonga indefinidamente no tempo, é o motor de um persistente crescimento.
A produtividade do trabalho joga um papel essencial nessa equação. As empresas querem que a produção por trabalhador cresça a cada dia. E esta depende de vários aspectos, como a qualificação das pessoas, sua saúde e alimentação, o ambiente laboral, a eficácia da gestão, a modernização dos postos de trabalho, a contribuição da tecnologia da informação.
Nesse rol, esquecemos às vezes que há um fator indispensável aos ganhos de produtividade do trabalhador: é o aumento de capital. Um exemplo frequentemente lembrado é o de constatarmos que um imigrante de um país pobre e precário, ao aportar a uma economia desenvolvida, multiplica sua capacidade de produção dezenas de vezes em um único dia. Tudo graças ao capital: acesso a eletricidade, a transporte eficiente, a locais de trabalho bem concebidos, a supermercados organizados, a escolas em tempo integral para os filhos. Capital coletivo, disponível a todos, do qual esses imigrantes usufruem de algum modo, ainda que marginalizados, ainda que sujeitos a condições de vida draconianas, até cruéis.
Na atual situação demográfica, em que a população da maior parte dos países se estabiliza e, na média, envelhece, isto leva a um paradoxo. Por um lado, menos gente é bom, porque reduz a urgência de investir no aumento desse capital. Em termos per capita, haverá um crescimento vegetativo e podemos nos concentrar em sua manutenção, na melhoria da sua qualidade, na agregação de tecnologia. Por outro lado, menos gente exige que os trabalhadores, em menor número, sejam proporcionalmente ainda mais produtivos e mais preparados para lidar com um ambiente tecnologicamente avançado. E a escassez de mão de obra pode elevar os salários acima dos ganhos de produtividade, um tapa na cara dos patrões...
Nos EUA, essa situação tem sido bem documentada. Até 2015, aproximadamente, a remuneração do trabalhador operacional, o “blue collar”, mantinha-se surpreendentemente estável havia décadas. Desde então, nos últimos dez anos, passou a aumentar de modo consistente. O fechamento à imigração acelera essa tendência. Entre 2024 e 2025 estima-se que o crescimento médio do salário real americano passará de 5%. No longo prazo, haveria então uma mudança estrutural a mais no ambiente das empresas, o de contar com uma força de trabalho com remuneração “excessiva”. O clamor pela reprodução humana, lido nesse contexto, alcança uma dimensão de cinismo desavergonhada.
O curioso é que a sinalização da tecnologia, com tantas aplicações de IA à produção, à melhoria da qualidade dos serviços, à racionalização do ensino, à gestão da infraestrutura urbana, à eficiência energética, é de que a redução da população em idade laboral e a expansão do atendimento ao idoso e ao jovem em formação podem conviver com ganhos de produtividade consistentes. A lógica conservadora do trumpismo será então antiga? É nesse descompasso da ideologia com os fatos da vida contemporânea que moram algumas das suas contradições.
Os trabalhadores americanos já passaram neste século por crises importantes, que truncaram seu acesso a oportunidades de melhoria: o 11 de setembro, a bolha da Nasdaq, o subprime, a COVID-19. Nós do Brasil e de outros países latino-americanos, além disso, vivemos, mais atrás, momentos comparativamente piores, marcados por regimes sanguinários que deixaram suas cicatrizes no coração das pessoas e que ainda nos assombram. A retomada que hoje se vislumbra nas dobras dos equívocos do trumpismo ilustra uma vida possível, mas que sempre tentam nos negar. Há um ajuste viável entre equilíbrio econômico e dignidade. Infelizmente, a cobiça da elite, sua paixão pelo poder, é um dos tóxicos que desandam essa construção social. É possível que tenha moldado esse e outros elementos da estratégia que guiará as ações dos EUA nos próximos anos.
Bernardo Lins é doutor em economia pela UnB e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do IBAP. Escreve todo o dia 16 do mês na Revista PUB.











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