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O Mecanismo, o câncer e o (triste) Brasil de 2020

- Daniel Ferraz -



O grande mecanismo global. José Padilha, diretor de O Mecanismo (Netflix), está(va) correto. Em uma das cenas, Marco Ruffo (Selton Mello) diz, sobre o Brasil: “Mesmo com todos os tratamentos que existem, o câncer luta para continuar existindo. E a maior parte das vezes ele vence”. Sim, é triste, mas na maior parte das vezes, o câncer instaurado na e pela política e economia no Brasil (e no mundo) sempre vence. Em uma das cenas da série, mais exatamente no episódio 8 da primeira temporada (8min26seg), o delegado Ruffo, tem um insight, qual seja, uma epifania após perceber sua filha mexendo em seu tablet. A filha olhava fixamente para fractais infinitos:


Fotograma: O Mecanismo, Temporada 1, episódio 8, 8min26seg.

No desenrolar da cena, ele desesperadamente chama a esposa para explicar o seguinte: “Regina, eu quero te mostrar uma coisa, vem comigo. Os fractais. Os fractais que a Beta fica olhando o tempo inteiro. Isso é o mecanismo. O mecanismo tem o mesmo padrão dos fractais: uma coisa infinita; um modo de funcionamento que se autoalimenta e expele, cospe o que não faz parte. O mecanismo está em tudo, você entendeu? Em tudo. Do governo federal ao seu João, no macro, no micro, num padrão. O poder econômico e os agentes públicos, eles nomeiam as diretorias que dão as obras para os empreiteiros, sempre os mesmos empreiteiros e devolvem o dinheiro, parte do orçamento, para os políticos e diretores, como forma de propina. Um sistema que se auto perpetua. Quem está no governo tem que botar a roda para girar, é um padrão. Isso elegeu todos os presidentes, todos os presidentes, até hoje. Quem não adere, não vinga, você entende? Tudo, tudo é o mecanismo. Do flanelinha que recicla, na carteira falsificada para pagar meia entrada, no suborno pro guarda para aliviar a multa. E os ricos mais ricos e os pobres cada vez mais pobres”. Assim, seria o atual presidente, como muitos afirmam, uma marionete dos grandes bancos + donos da grana?


Pois é, cara leitora, eu diria que o mecanismo provavelmente habita todos nós brasileiros, de uma forma ou de outra, por mais doloroso que isso possa soar. Porém, deve haver esperança, no sentido freireano de esperançar, ou sucumbiremos antes de 2022. Há aqueles que percebem o grande mecanismo e querem desconstrui-lo, desmontá-lo e desafiá-lo, em nome de um mundo mais justo, equânime e coabitável (nesse bojo, eu coloco todos os articulistas da Revista PUB e educadores – freireanos – deste país). Infelizmente, por conta da grande novidade nas comunicações e relações sociais do início deste século, as fake News das redes sociais!, há aqueles que nem percebem que o mecanismo existe e, ainda por cima, instantaneamente rebatem dizendo que é tudo coisa de comunista, socialista e progressista (como se fossem sinônimos) que querem acabar com o Brasil. Teoria da conspiração. Nesse bojo, coloco, sem exceção, todos os eleitores manipulados pelo clã Bolsonaro durantes as eleições e, ainda, os fanáticos (nas minhas contas, 15% de brasileiros barulhentos e raivosos) os quais, mesmo com mais de 100.000 mortos na pandemia da COVID-19, o desmonte do sistema de universidades federais, a afronta e descrença em relação às ciências, o desgoverno vexatório, despreparado e macabro demostrado no famoso vídeo da reunião ministerial (quanta vergonha, quantos palavrões, quantas ofensas, quanta linguagem chula, quanta falta de decoro), o tratamento aos indígenas e a destruição da Amazônia, a subserviência a Trump e à bandeira estadunidense, a discriminação aberta à comunidade LGBTQIA+, e a lista segue, continuam apoiando o ocupante do cargo de chefe da nação e, claro, celebrando e espalhando as ações supracitadas. Toda solidariedade a Matheus, o motoboy discriminado pelo agora “esquizofrênico e coitadinho”, representante dessa classe média que diz empoderada pelos mesmos discursos e ações do clã:


Fonte – Facebook.

Para mim, as ações racistas, xenofóbicas, homofóbicas, transfóbicas, misóginas, antiecológicas e opressoras em termos de classe econômica da nova classe média brasileira (essa, bolsonarista fanática, do “cidadão de bem, engenheiro civil e desembargador”) pioram o mecanismo ao mesmo tempo em que escamoteiam o grande problema: o próprio sistema. O mecanismo é histórico, é maior que todos nós, está além do nosso alcance de entendê-lo. Jessé Souza, em pesquisa/entrevista com Sérgio, o CEO de um grande banco brasileiro, explica “como se compra o mundo”, de acordo com o entrevistado. Na chocante entrevista, Sérgio afirma:


“Aqui em São Paulo o que move o mundo é o dinheiro e todo mundo quer viver bem. As pessoas são compradas com dinheiro vivo e com depósitos em paraísos fiscais criados para isso. A gente sabe fazer bem feito. Sem deixar rastro. A cidade é toda comprada, não se iluda, toda licitação pública e todo negócio lucrativo, sem exceção, é repartido e negociado” (Sérgio, p. 171)


Há outros trechos ainda mais ousados na entrevista. Quando li, quis acreditar que Sérgio era um personagem de um dos livros de Rosa Montero. Mas não, ele existe e é brasileiro. Em outro texto, Conti explica, por meio de sua releitura de “Capital e Ideologia”, que:


“A meritocracia despreza o colossal esforço humano, o empenho social secular e a legislação em causa própria que permite aos novos paxás o acúmulo astronômico de capital”.


“O mecanismo é complementado pelos paraísos fiscais. Offshores, bancões e banquinhos fraudam fiscos nacionais numa boa. Papéis do Panamá, contas secretas na Suíça, ações e derivativos que pulam de Bolsa em Bolsa garantem sombra e água fresca —e jatinhos, helicópteros e apartamentos na Flórida— aos donos da cocada preta”.


Assim, ousaria dizer que enfrentamos um grande mecanismo global em que tudo se resume a um sistema capitalista autodestrutivo em que poucos têm muito e muitos têm pouquíssimo, ou quase nada. Até aqui, nada novo. Teoria da conspiração? 1984 de Orwell faz tanto sentido, não é?


Reconhecer como cada um de nós olha para o mecanismo é, para mim, urgente. Faz parte de uma autocrítica fundamental para seguirmos adiante e, mais importante, para que possamos coletivamente pensar em caminhos alternativos, se ainda nos resta tempo para isso. Dialogar com os que não enxergam mecanismo algum, ou mesmo os que acham normal manter a grande roda de naturalizações do sexismo, discriminação racial, supremacia branca, homofobia e da nova e iludida “classe média”, é fundamental, ainda que seja impossível, no momento, curar este câncer.

 

Daniel Ferraz é docente no curso de Letras-Inglês da Universidade de São Paulo e forma professores há 25 anos.

 


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