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Uma elefântica princesa rosa no meio da sala

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    Revista Pub
  • há 1 dia
  • 5 min de leitura

-ZECA SAMPAIO-


À maneira de meu mestre Gui Le Purvin


Um dia desses, distraído, andava pela vida, quando uma princesa tão sem graça, tão desajeitada, tão feia que dá até raiva, entrou no meu caminho inevitavelmente.


É difícil explicar o impacto causado por essa presença incômoda. Eu que vinha de mais uma daquelas batalhas inefáveis; meus esforços de sobreviver aos assaltos da vida diária, aos meandros labirínticos desse conto surreal e inacreditável em que estamos metidos, eu e você, sem muita consciência de que o autor só quer mesmo nos ferrar e por isso fica inventando umas belezinhas de pequenas tramas ocas.


Tentava organizar de um mínimo o meu caos interno, com o remédio certeiro de Ian Anderson, sua flauta e voz, acompanhado pela banda mais ardida do rock, depois de ter enveredado pelo Samba do Grande Amor do Chico (sou eclético), quando caiu na minha mão um estranho volume escuro. Na capa, dois nomes: Ivone e Gombrowicz. Uma ilustração de rabiscos entre pássaros e peixes (eram carpas ao creme, descobri depois) e o vazio.


Arte do autor
Arte do autor

Não resisti a abrir as páginas e mesmo em meio a minha confusão mental, entrar pelo enredo dramático da desgraçada Princesa da Borgonha. Peça dramática em quatro atos, que se vão como um shot. Ao mesmo tempo, curto as imagens bem loucas, enquanto consulto meu amigo inseparável que me diz que esse tal de Witold fugiu da Polônia pra Argentina na época da 2ª Grande Guerra e escreveu um bocado de coisa maluca que ninguém entendia (naquele tempo, a bem dizer. Hoje ninguém entende nada de nada mesmo, mas também não se importa, agora todo mundo sabe o que é ser grosso como um tijolo).


Esqueci que tinha a importante missão de ir tomar um cafezinho na padoca lá de baixo, quem sabe encontrar alguém da turma e discutir as importantes notícias do dia. Conversar sobre isso e aquilo, coisas que nóis não entende nada, depois puxar uma paia, andar um pouco pra fazer o quilo...


Eu ainda não tinha visto a tal da Ivone, mas logo ficou claro o quanto ela era destituída de qualquer atrativo, feia mesmo, degradada e degradante. Difícil de imaginar, mas já grudada no fundo da parede das memórias fantasiadas, a tal da moça já me causava um combo de pena e aversão, mal tinha passado as primeiras páginas. Pelo visto, um efeito universal, as personagens todas da peça caem na mesma feitiçaria, enredados, como dizer, pelo enredo. Uff.


Não contei ainda, mas um dos meus talentos imaginados, e poucas vezes experimentados, sempre foi o de diretor teatral. Mal começo a viajar por um texto e já me vejo como o líder conceituado da grande montagem mundialmente reconhecida que causa tanto impacto quanto é inovadora e polêmica. Já contava com os debates acirrados sobre a concepção um tanto de pé manco que eu criara para expor o triste destino da jovem dama.


Mas, afinal, o que me atraiu nela? Ou, na fábula dela? O que eu teria pra dizer num palco com aquele material, quase simples, quase incompreensível e que, ao mesmo tempo, expunha tão claramente o clima de ódio em que vivemos todos, hoje em dia (não é à toa que ele foi escrito na década de 1930, na Polônia, enquanto os nazistas ateavam suas labaredas livrescas). Eu sentia um misto de atração ineludível e repulsa estrondosa pela anti-heroína e por seu enredo. Querendo esquecer todas as minhas pequenas feiuras e mazelas que o texto despertara, ao mesmo tempo em que precisava mostrar pra todo mundo aquela imagem repulsotransitúmidimpactandromedárielefântintolerábilíssimamentalmentinesquecítola que insistia em permanecer na retina.


Precisava falar disso com alguém. E, nessas horas, ninguém melhor que meu amigo, Pitu, que está sempre à disposição, no segundo banquinho, do lado de baixo do antigo córrego, onde entre um trago e outro distribui parte da sua imensa sabedoria para aqueles que se disponham a lhe fornecer inspiração em forma de combustível etílico.


Desci correndo pelas ruas, com minhas calças vermelhas e meu casado de general e fui me aconselhar com meu guru que me recebeu com aquele sorriso de quem já sabe o que responder antes mesmo de a gente chegar perto e de quem já está saboreando a surpresa que a resposta vai causar. Mal sabia ele que nada poderia me causar espanto depois da leitura empreendida e regurgitada de forma descosida. Fazia uma tarde meio apagada, com uma chuvinha que não molhava, um cinza sem cor, um dia sem fim, um dia feito Ivone, e eu ali com a alma atarantada, sou uma criança e não entendo nada: mestre de onde vêm os sonhos ruins? As fracas enfermidades, as pequenezas que não queremos confessar a nós mesmos, nem aos melhores, ou piores, amigos, pelas quais somos capazes de matar, esmagar, torturar, cometer as mais iníquas iniquidades? (Uff?)

O Sábio da baiuca pausou um momento (coisa rara) antes de responder. Deu tempo de lembrar quando, anos antes, eu havia dito a ele que queria enriquecer e ele me explicou na lata, “abre uma janela e vende cachaça, nada dá mais futuro nesse mundo”. Lembrança juntada aos meus arrependimentos, já que eu não segui sua sabedoria e permanecia pobre como antes, e, pronto, ele já tinha uma resposta na ponta da língua: “espelho triste é espelho quebrado”.


Depois disso, ficamos ali aproveitando o esquecimento que o líquido quente traz dissolvendo as cascas duras que a vida cria por dentro da gente, como a rua mal calçada faz com os nossos pés descalços...


De madrugada, na solidão de meu quarto, mesmo depois de o Hugo ter atendido ao meu chamado, não encontrava sossego, não conseguia ainda alcançar o profundo sentimento que a parábola me despertara (pra não falar do profundo ensinamento do mestre). Sentia que precisava de mais. Talvez, realmente sair do profundo estado de letargia que me havia imposto já há alguns anos e ir à luta para montar o tal do texto, ou talvez melhor, apenas contar pro mundo o que ele tinha me provocado e esperar que alguém mais esperançoso e bem animado resolvesse resolver (Uff!) essa urgência em meu lugar. Disposição que, é claro, prevaleceu.


Por isso, cheguei a esse ponto de me deixar vislumbrar um pouquinho pelo mundo que está aí fora tentando me espreitar e entreguei essas poucas linhas para um amigo (pelo menos assim ele ainda se define, eu acho) para que levasse a um amigo (dele, não meu) que edita uma revista. Quem sabe isso previna as pessoas para que não leiam esse libelo perigosíssimo e sem sentido. Essa ameaça ao reino, ao bem público, ao sossego das tardes de Passárgada.


Depois, não digam que não foram avisados, hein?

 

Serviço: Ivone, Princesa da Borgonha. Witold Gombrowicz. N-1 edições. São Paulo, 2025.

Tradução: Marcelo Paiva de Souza. Ilustrações: Isabel Lee.



Zeca Sampaio é escritor, diretor de teatro, músico e professor de Educação em Artes.




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