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A câmara de gás e a “brutalização” da sociedade.

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-ZECA SAMPAIO-


Muito está sendo dito e ainda será debatido a partir da cena horripilante, apresentada em vídeo, em que policiais assassinam uma pessoa colocando-a em um porta-malas cheio de gás. Mais uma vez, a onda radical de uma direita conservadora e neo-liberal nos leva a ultrapassar os terríveis feitos nazistas em que as câmaras de gás eram utilizadas discretamente. Nossos novos facínoras fazem tudo à luz do dia e ainda parecem se orgulhar e comemorar suas matanças.


Minha intenção aqui é de apontar um problema que certamente se apresentará para toda a sociedade brasileira, caso consigamos alterar os rumos que ora são objetivos claros de uma necropolítica alimentada pela ideologia neonazista, encampada e representada pelo atual mandatário da nação.



Não bastará, como exigem cheios de razão os manifestantes nas ruas, o fim da Polícia Militar. Caso isso seja possível e de fato aconteça, sobraremos com um enorme contingente de seres brutalizados por uma formação dita militar aplicada sistematicamente em nossas polícias, nas forças armadas e hoje também em escolas. Além disso, temos praticamente um terço da população que adere a essa visão de mundo e apoia assassinatos em massa de jovens negros, em chacinas planejadas e executadas por batalhões especiais da polícia ou do exército, sob o argumento de que são bandidos. Ou, o homicídio de um ser humano na câmara de gás perpetrado por agentes de segurança, apenas porque ele não estava protegido por uma pele branca, roupas de grife ou uma fala “educada” nos padrões utilizados pela chamada “elite” (que de elite não tem nada). Ou seja, por ser identificado com a parcela (maioria) da população que não tem quaisquer direitos básicos. Aqueles que não são sequer considerados humanos, mas, como explica Agambem no âmbito da biopolítica, são vistos e tratados pela autoridade e por aqueles que a sustentam como zoé – vida em nível animal – em contraposição a bios – vida humana.


Esta análise tem sido apresentada repetidas vezes por vozes que hoje se fazem ouvir e sustentam a denúncia de uma sociedade dividida, em que os que detêm e os que sustentam o poder, simplesmente desumanizam todos os que não estão em suas fileiras, atribuindo-lhes características tais que permitem tratá-los como animais de carga para o trabalho e também eliminá-los das formas mais brutais sempre que assim entender a autoridade.


Minha preocupação não é com a humanização dessa imensa parte da população. Em primeiro lugar, porque já são humanos e estão reivindicando isso nas ruas, na mídia, na luta política. Em segundo lugar, porque acredito que a humanização de quem foi desumanizado à sua revelia é um processo de educação libertária que já está em pleno andamento no Brasil desde que Paulo Freire o anunciou há mais de meio século.


A questão que me coloco é a do que faremos com esse contingente de brutalizados, com essa horda que foi desumanizada em sua formação, mas também em sua própria ação. Penso que depois de participar de ações bárbaras como as citadas acima – e de muitas outras que temos assistido e cuja lista não caberia no espaço desse artigo –, ou mesmo depois de apenas apoiá-las, é quase impossível que alguém retorne ao convívio humano, entre iguais. Como desfazer a “brutalização” daqueles que se lambuzaram na barbárie? Como trazer de volta para o seio da humanidade aqueles que foram aliciados pelo poder e pela violência transformada em prazer e realização pessoal?


Se não tivermos uma resposta para isso, seguiremos com um terço da população impregnada de barbárie, sem capacidade nenhuma para a convivência democrática. Os grupos paramilitares da Colômbia, embora surgidos e alimentados por processos diferentes, mostram a gravidade de se ter uma quantidade enorme de pessoas armadas, violentas e dispostas a tudo para manter-se acima da massa, impunes e intocáveis.


Como lidar com a “brutalização” e desumanização de parte considerável da população? Como tocar essas pessoas para além da culpa e da punição?


Os tribunais do perdão instalados por Mandela na África do Sul apontaram caminhos que tiveram frutos alentadores em Ruanda, onde a questão da “brutalização” parecia impossível de ser resolvida. Mas uma proposta como essa precisa de coragem política e uma convicção muito forte no poder restaurador das relações humanas.


Para nos aproximarmos de uma política de humanização capaz de dar conta de um histórico de barbárie como o nosso, precisaríamos aprender muito com nossos irmãos africanos, que parecem estar muito a nossa frente na compreensão do significado de ubunto, a nossa conexão com o outro.


Temos ainda que nos libertar de um punitivismo profundamente arraigado, mesmo nos movimentos mais progressistas e dedicados à inclusão e ao estabelecimento de uma sociedade justa e democrática.


Há muitos e muitos anos, conheci, Mairawã, um indígena oriundo do Xingu, que me disse que havia sido educado entre brancos para poder entender sua forma de vida e de pensamento, depois que seu pai, o cacique, juntamente com o conselho da tribo, chegou à conclusão de que era preciso entender o homem branco para poder pacificá-lo, já que este era muito bruto, violento e incapaz de convivência pacífica.


Teremos que fazer um movimento parecido. Buscar meios de pacificar aqueles que estão cada vez mais inseridos em uma lógica brutal e desumana.


Mais do que o fim da Polícia Militar (como se apresenta hoje) queremos a humanização dos seus integrantes. Queremos que seres humanos não sejam mais capazes de asfixiar pessoas em porta-malas, ou sob seus joelhos no pescoço, ou que não mais tolerem entrar em comunidades atirando em qualquer um que surja pela frente. Que olhem para todos os seus semelhantes como o que são: seres humanos, dignos de respeito e direitos básicos e que voltem a respirar o ar da ética.

 

ZECA SAMPAIO, dramaturgo e romancista, é associado ao IBAP.




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