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A PLANIFICAÇÃO URBANA E A INVISIBILIDADE SOCIAL DA POBREZA

-M. Madeleine Hutyra de Paula Lima-



A mídia noticiou: Folha de S. Paulo (Cotidiano) e Globo (SPTV). Em 4 de maio de 2023, a Guarda Civil Metropolitana tentou impedir que a Cozinha Comunitária do MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, continuasse com seu trabalho solidário de distribuição de 500 marmitas na Praça da Sé, centro da cidade de São Paulo, para pessoas vulneráveis, que fazia desde a época da pandemia da Covid-19.


A fundamentação da “autoridade” variava desde a falta de fiscalização pela Vigilância Sanitária até o fato de que a “zeladoria” da prefeitura de São Paulo (Subprefeitura) visava “revitalizar” o centro da cidade e essa entrega de marmitas estava dificultando sua atividade. Diante disto, a Vigilância Sanitária foi solicitada; compareceu e validou a condição sanitária dos alimentos. Sobrou, assim, a segunda justificativa, a alegada “revitalização”.


Por evidente, a GCM não agiu por conta própria, mas atendeu a determinação superior...


Na mesma semana acontecia a apresentação da peça “Um memorial para Antígona” no Teatro da USP, da rua Maria Antônia, seguida pelo debate “Antígona e os corpos desaparecidos” e, após, pelo lançamento do livro “O Congresso dos desaparecidos”, do jornalista e escritor Bernardo Kucinski.


Sobre o memorial, uma pessoa da plateia levantou a ideia de ser erguido um “Memorial para a Fome”, diante das circunstâncias em que vive uma parcela significativa da população do Brasil. A proposta foi recepcionada pelos aplausos do público.


Existe um perigoso fio conduzindo a atitude da época da ditadura, -- quando muitas pessoas deixaram de existir, consideradas “desaparecidas”, sem qualquer respeito pela dor da família que nem podia enterrar o corpo do ente querido --, com a posição da atual autoridade pública municipal que prefere tornar invisíveis pessoas vivas passando fome, priorizando uma pretensa forma de “revitalizar” o centro da cidade.

Parece ser uma nova forma de “desaparecimento”, em vida, de pessoas vulneráveis. As pessoas em busca de comida devem desaparecer de nosso olhar? Elas tornam a cidade “sem vida”? A cidade é de todos e as variadas formas de vida das pessoas merecem ser registradas. O papel da autoridade eleita é melhorar as condições de vida dos habitantes da cidade de que é gestora, e de nada serve maquiar a cidade real, omitindo os problemas que nela existem.


Sabemos que a maioria dos problemas nas cidades tem, na maioria das vezes, origens regionais, nacionais e até globais... E que as soluções nem sempre podem ser resolvidas pelos próprios municípios. No entanto, mitigar as dificuldades de vida das pessoas no município é de competência local, enquanto não se adotam políticas públicas mais eficazes.



Arte - Aloisio Van Acker

O tema atrai vários questionamentos. Como entender o uso do espaço público que é de todos? Quem determina os limites de seu uso sem acarretar discriminação? Oferecer comida a uma parcela da população que tem fome em espaço público ofende a quem? Se a verdade choca, urge que sejam tomadas providências políticas coordenadas entre os vários âmbitos de governo, em especial o problema da fome e da pobreza. A fome tem pressa e o governo deve buscar soluções; não se resolve o problema negando visibilidade ao vulnerável, uma forma de omissão administrativa.


A Praça da Sé é o centro simbólico da cidade de São Paulo e onde está erguida a Catedral da Sé, símbolo da fé católica-cristã. Nenhuma delas deve ser considerada monumento público que justifique diminuir o valor do ser humano e de sua dignidade, princípio básico de nossa Constituição Federal. O espaço público é destinado para o uso da população e servir dele para distribuir marmitas, na falta de outro local, apenas valoriza esse espaço.

Cabe a questão: o que seria “revitalizar” a cidade? Afinal, para que serve a cidade? Jean-Jacques Rousseau dizia:


“A cidade. Os modernos quase que completamente esqueceram o verdadeiro sentido desta palavra. A maior parte confunde as construções materiais de uma cidade com a própria cidade e o habitante da cidade com um cidadão. Eles não sabem que as casas constituem a parte material, mas que a verdadeira cidade é formada por cidadãos”. (Em “O Contrato Social”)


A forma de fruição da cidade por seus habitantes enseja um debate oportuno, pois a cidade de São Paulo está vivendo o momento da revisão de seu Plano Diretor Estratégico aprovado pela Lei n. 16.050, de 31 de julho de 2014, quando se reavivam as situações de conflito entre os interesses econômicos e os interesses sociais da população e que exigem soluções plausíveis.


Os princípios que regem a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município da Cidade de São Paulo de 2014 são: função social da cidade; função social da propriedade urbana; função social da propriedade rural; equidade e inclusão social e territorial; direito à cidade; direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e gestão democrática.


Nesse processo de revisão deve ser respeitado o princípio da gestão democrática, que é a garantia da participação de representantes de diferentes segmentos da população nos processos de planejamento e gestão da cidade e reflete o princípio da soberania do povo, como manifestação de democracia participativa.


A função social da cidade contempla o necessário respeito à cidadania e à dignidade da pessoa humana, também pelo poder público, e o respeito ao objetivo da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária, por meio de políticas públicas adequadas no âmbito local. A equidade social e territorial traduz o objetivo da República de reduzir as desigualdades sociais e regionais, no caso da cidade, entre grupos populacionais e entre os distritos e bairros do município.


Por sua vez, o direito à cidade compreende o processo de universalização do acesso aos benefícios e às comodidades da vida urbana, representando o objetivo da República de promover o bem de todos sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é constituído por elementos do sistema ambiental natural e do sistema urbano organizados de forma equilibrada para a melhoria da qualidade ambiental e bem-estar humano.


Lamentavelmente, o poder público está atropelando o procedimento exigido, como designação de audiências públicas em horários pouco acessíveis para a população, em dias seguidos, para atender uma pauta de emergência desnecessária e, desta forma, tornando inviável a necessária participação popular.

A revisão exige que esses princípios estejam contemplados nas propostas de revisão apresentadas, devendo estar presentes também nos procedimentos para sua aprovação. Como dizia Milton Santos, em “A Urbanização Brasileira” (p. 125-126):


“É um equívoco pensar que problemas urbanos podem ser resolvidos sem solução da problemática social. É esta que comanda e não o contrário.

A planificação urbana, entretanto, é, sobretudo, voltada para os aspectos da cidade cujo tratamento agrava os problemas, em vez de resolvê-los, ainda que, à primeira vista, possa ficar a impressão de resultado positivo. Trata-se de uma planificação urbana sobretudo técnica, preocupada com aspectos singulares e não com a problemática global, planificação mais voltada para o chamado desenvolvimento econômico, quando o que se necessita é de uma planificação sociopolítica que esteja, de um lado, preocupada com a distribuição dos recursos sociais e, de outro, consagre os instrumentos políticos de controle social, capazes de assegurar a cidadania plena. Um plano diretor não pode contentar-se em ser apenas uma disciplina do crescimento físico ou da dotação de serviços, mas deve incluir uma clara preocupação com a dinâmica global da cidade, buscando orientá-la no interesse das maiorias”.

No entanto, grupos econômicos, ligados à especulação imobiliária, estão exercendo forte pressão sobre o poder local para fazer valer seus interesses imediatistas na planificação urbana e que contrariam os interesses da própria população, em muitos aspectos, implicando uma visão mais realista e de longo prazo. Lamentavelmente, o poder público está atropelando o procedimento exigido, como designação de audiências públicas em horários pouco acessíveis para a população, em dias seguidos, para atender uma pauta de emergência desnecessária e, desta forma, tornando inviável a necessária participação popular.

Em audiência pública, na Câmara Municipal (27/4/2023), vários segmentos da sociedade civil organizada condenaram a forma apressada de tentar aprovar a revisão do Plano Diretor, apresentando forte crítica à verticalização desordenada que a cidade está sofrendo, sem estudos de impacto de vizinhança. Em consequência, é possível prever sérios prejuízos para os munícipes na configuração dos bairros e de uso dos serviços públicos e que tenderão a crescer diante dessa revisão apressada do Plano Diretor, sem o necessário debate com a população, que acabará, certamente, nos tribunais.

A política urbana exige compromisso do governo com o interesse social e para isto deve ouvir efetivamente a sua população em audiências passíveis de comparecimento. A forma adotada para a revisão do Plano Diretor do município de São Paulo reflete uma realidade onde a alegada “revitalização” da cidade está sendo desfigurada por não contemplar os interesses dos moradores que compõem a cidade real, e não aquela dos projetos traçados em escritórios elegantes distanciados das necessidades diárias da população. Principalmente, se deixar de contemplar na essência as condições para assegurar a vida digna de todos os seus habitantes.

 

Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é Advogada, Mestre/Direito Constitucional e associada do IBAP .


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