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A RETIRADA

- Celso Augusto Coccaro Filho -



Nelson, magistrado, completou sessenta anos de idade.


O marco sexagenário sempre é importante.


O aniversário ocorreu em meio à pandemia, o que lhe deu especial relevância.


Nelson ingressou no grupo de risco da COVID-19, e passou a fazer jus ao isolamento vertical.


Ontem teria uma mera gripe, mas hoje poderá ser intubado e levado a uma UTI, havendo vagas. Um dia apenas, e mudam os protocolos e o futuro pode se abreviar.


O fato deixou Nelson reflexivo.


Trabalhou desde os 18 anos. Não vem ao caso expor qual era a natureza do trabalho juvenil. Mas Nelson ingressou na magistratura aos 25, e se aposentaria, caso mantidas as condições originais, que ele julgava sólidas, aos 60 anos.


Nada é sólido, muito menos uma constituição, e Nelson não pode se aposentar.


Para falar a verdade, não pensava nesta data no início da carreira.


Chegaria aos setenta, aos setenta e cinco, até aos oitenta se deixassem, sem dificuldade alguma. A aposentadoria era a antessala da morte, segundo o seu pai.


Mas o futuro é ingrato, e muito mais a genética, outro legado do pai. Desde os cinquenta, marco da senilidade em outros séculos, Nelson se tornou diabético e hipertenso.


Eram moléstias suportáveis, e no lanche dos magistrados soubera que não estava só. Eram mazelas comuns.


O que incomodava e fazia lamentar a reforma que acrescentara alguns anos na sua jornada eram a tendinite e a distimia. E o cansaço. Era juiz de família e sucessões.


A tendinite era causada pela redação dos despachos e mais despachos. Pelas sentenças.


Nelson tentara aliviar-se deste fardo recorrendo a auxiliares. Escreventes, estagiários.


Este fato não é oficial e nem poderia ser, porque a judicatura é indelegável.


Mas acontece.


Menos com Nelson, e nem para aliviar a tendinite.


Bem que tentou.


Mas o resultado foi, digamos, estranho.


Um dos auxiliares sentenciava arrolamentos com grande apuro. No mínimo cinco páginas. Jargão técnico; o de cujus, Le Droit de Saisine. Brocardos: cautio rei uxoriae; fructus sine usu esse non potest. Doutrina alemã: Ihering, Savigny; francesa (Pothier); a influência alienígena do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) ou do Code Napoleon.


O outro escrevia sentenças que, quando muito, chegavam a dez linhas, com linguagem colada de boletins de ocorrência redigidos na madrugada de algum distrito policial periférico.


Como assinar aqueles importantes atos jurisdicionais e atribuí-los ao mesmo Nelson, que, embora depressivo, não era bipolar?


A tendinite não sarava. Ia e voltava, com intensidade variável, às vezes com pontadas que chegavam às omoplatas (espátulas, Nelson, espátulas...).


E a distimia?


Se estivesse lotado numa região pobre, talvez fosse diferente. Teria um sentido de missão. Ministrar a justiça aos hipossuficientes, despachar com defensores públicos. Ânimo. A humanidade cansa, mas na imperfeição fortalece a posição dos sábios.


Havia uma ponta de egoísmo que Nelson não aceitaria reconhecer. Em meio ao caos e à pobreza, a sua platitude intelectual lhe daria algum conforto. Marechal Rondon, talvez. Suave Mari Magno (ler Lucrécio).


Ou Machado de Assis:


Lembra-me que, em certo dia, Na rua, ao sol de verão, Envenenado morria Um pobre cão.

Arfava, espumava e ria, De um riso espúrio e bufão, Ventre e pernas sacudia Na convulsão.

Nenhum, nenhum curioso Passava, sem se deter, Silencioso,

Junto ao cão que ia morrer, Como se lhe desse gozo Ver padecer.


Nada disso. Era um “marajá” de faz de conta, que trabalhava num bairro de ricos e de sonegadores. Seus vencimentos de potentado mal pagavam um mês de rateio dos condomínios vizinhos. Aquele jornalista econômico que defendia todas as reformas confiscatórias morava lá perto. Podia vê-lo na varanda. Figura empertigada.


A distimia caminhava. Devagar, mas progredia. A bula do antidepressivo não deixava dúvidas: incompatibilidade visceral com os remédios para a diabete e a hipertensão. E vice-e-versa.


Quando fosse nomeado para o Tribunal talvez houvesse um alívio. Mas a senectude, o que chegaria primeiro?


Faltava a gota d’água, que veio em forma de enxurrada.


Fora nomeado desembargador, pelo quinto constitucional, aquele advogado.


Inacreditável! Aquele advogado?


Aquele advogado era muito mais novo que o Nelson, e uma das suas qualidades era ser inefável; então não falaremos sobre ele, embora sua folha corrida fosse, de fato, curiosa e muito extensa, inversamente ao magro e desinteressante currículo.


Os fatos trágicos ferem, quando não matam. Subitamente realista, Nelson concebeu a solução: aposentadoria-sanção.


A salvação estava ao seu alcance; é uma prerrogativa profissional, e basta preencher as condições legais para gozar do benefício.


Imaginou-se um Dreyfus, com a segurança de que a perda do grau não o levaria à Ilha do Diabo, e, na verdade, não geraria perda alguma, salvo algum incômodo visual e moral, nada que uma mudança de ares não resolvesse. Ares melhores. A aposentadoria, esta sim, uma prerrogativa, um direito, galgaria sobranceira o tempo e os limites impostos pela reforma constitucional.


Mãos à obra! Ofender um advogado talvez fosse o caminho. Fácil.


Nelson passou à análise dos candidatos. Havia uma advogada irritante, provocadora, abusiva. Transformava maridos e pais, esposas e mães em vilões; sua pena fazia do trabalhador comum um bilionário sonegador de alimentos; uma inocente viagem a Orlando, paga a duras penas e parcelas, agravada pela foto com o Mickey Mouse, criava o status de riqueza a ser preservado até o final dos tempos. E só pegava casos bons. Pobres, jamais!


Talvez não desse certo. Além da batalha ordinária, haveria uma incidental: seria taxado de machista tóxico.


Melhor buscar a paridade de armas.


O segundo candidato era um jovem advogado, ofensivo e arrogante, chegado a clientes abastados, e que chegara a fazer dez petições praticamente iguais no prazo de uma semana, para retardar uma ação de alimentos. E, nos recursos, após a inevitável frase “desta vez não se houve com acerto”, ironizava as sentenças do Nelson.


Perde-se a paciência. Pronto, escolhido.


Debalde os esforços. A Ordem dos Advogados desferiu um desagravo, que teve ampla publicidade, os advogados passaram a evitá-lo e a hostilizá-lo, e os seus colegas juízes se uniram naquela irmandade corporativa férrea e inabalável, em torno de si, fazendo-o dever favores.


E nada de ser punido com a aposentadoria.


Mais uma tentativa: atrasar os processos, engavetá-los, pronunciar sentenças lacônicas e sem fundamento, nunca designar audiências, muito menos as de conciliação.


Outra frustração. A corregedoria exigia relatórios, que eram mais trabalhosos que os processos. Estes se acumulavam, e ignorá-los era inútil; vinham representações, recursos, mais correições, e o trabalho aumentava.


A Ordem dos Advogados desferiu outro desagravo, pois o desmazelo ofendia, e teve publicidade ainda maior. Os advogados passaram a odiá-lo e os seus colegas mais uma vez se uniram naquela irmandade corporativa férrea e inabalável, em torno de si, o que lhe fez dever incontáveis favores.


Levou repreensões, advertências.


Confessou, chegou a se declarar inepto, ofendeu o corregedor, mas nada da aposentadoria. Recusavam-se a puni-lo devidamente.


Restava a venalidade.


Será esta a finalidade da aposentadoria-sanção? A cessação das oportunidades de ganhos escusos? A exclusão da participação no comércio ilícito? A perda da corruptibilidade?


Este passo custaria muito a Nelson. A vulgaridade da tarefa exigiria imensos esforços espirituais, e o simples cogitar de tratar com algum lobista o recebimento de um apartamento em Miami lhe dava arrepios. Miami! Teria forças para confessar esta ignomínia? Sair rodando por aí num Porsche, num Jaguar, poderia gerar a visibilidade necessária para conduzi-lo ao processo disciplinar, mas, a que custo? E haveria fotografias!


A cafonice da corrupção é intragável. Ser corrupto de verdade exige uma atração rasteira por coisas que brilham.


Quando matutava sobre este passado recente, veio-lhe uma tosse, a garganta raspou.


A caminho do Hospital, Nelson matutava: ontem, quando tinha apenas cinquenta e nove anos, seria apenas uma gripe; hoje, aos sessenta, seria, enfim, a retirada?

 

Celso Augusto Coccaro Filho, sócio fundador do IBAP, é escritor e procurador do município de São Paulo.

 

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