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O STF e a Miséria da Democracia Brasileira

Atualizado: 5 de dez. de 2023

- Derly Barreto e Silva Filho -


“Isso aqui não é um quartel, em que o coronel manda e todos obedecem” – bradou o Presidente da República Jair Bolsonaro, então deputado federal, ao se insurgir, em 2002, contra a decisão de líderes partidários de suprimir o interstício de cinco sessões entre os dois turnos de votação de certa proposta de emenda constitucional (PEC) (cf. Diário da Câmara dos Deputados, 19 de dezembro de 2002, p. 56535).


Para ele, o interstício existe a fim de “assegurar um tempo maior para reflexão dos parlamentares por ocasião de tema tão relevante e de interesse nacional como é a votação de Emendas à nossa Carta Magna” (Diário da Câmara dos Deputados, 28 de março de 2003, p. 10558).


A questão, longe de se afigurar um preciosismo ou uma tecnicalidade de somenos importância da vida parlamentar, é de manifesta atualidade política e densa de significação jurídica, haja vista que as Casas Legislativas, para acelerar a tramitação de PECs, comumente suprimem referido interstício, medida que viola o direito das minorias parlamentares, quaisquer que sejam os seus matizes ideológicos.


Como registrado alhures, Étienne Dumont, no prefácio da obra Táticas parlamentares, de Jeremy Bentham, salientava, com precisão, o papel ordenador dos regimentos parlamentares, afirmando que, sem disciplina, o patriotismo tem tão escassa oportunidade em uma assembleia numerosa quanto os valores em um campo de batalha.


Mas a finalidade dos regimentos parlamentares – cabe ressaltar – não se reduz a assegurar a indispensável ordem dos trabalhos desenvolvidos no seio das câmaras legislativas. Na ambiência de um Estado Democrático de Direito, cobra-se, deles, ademais, a garantia dos direitos das minorias parlamentares.


Quando se diz que o jogo parlamentar há de se desenvolver segundo regras de atuação certas quanto à sua existência e seguras quanto à sua observância e aplicação, quer-se evidenciar não só que os atos do legislador devem ser fruto da disciplina – e não da desordem ou consequência inexorável da tirania das agremiações majoritárias –, mas, da mesma forma, que devem ser produto da deliberação ordenada e encaminhada segundo regras preordenadas a garantir o caráter representativo e plural da vontade parlamentar, com a consideração e ponderação de ideologias, pontos de vista e interesses políticos, econômicos, sociais e culturais minoritários ontologicamente divergentes – daí falar-se em devido processo legislativo como esfera jurídica e judicialmente defensável de senadores, deputados e vereadores.

Do célebre Manual de Práticas Parlamentares, de Thomas Jefferson, até hoje utilizado pela Câmara dos Representantes dos Estados Unidos da América (Rule XXIX), consta, logo no seu pórtico, citação de John Hatsell, segundo a qual os regimentos visam a salvaguardar a minoria dos caprichos e abusos da maioria.

Em um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro, governado por uma constituição rígida, é inadmissível o exercício do poder político sobranceiro aos seus comandos, porque todos os órgãos estatais estão colhidos pelas suas prescrições, e assim se encontram na medida em que são, por natureza, poderes limitados. Não há que se falar, pois, de soberania do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, mas de supremacia da Constituição. O poder reformador, exercitado por ambas as Casas do Congresso Nacional, não é exceção à regra – também se encontra abaixo da Constituição, submetido a normas jurídicas.


Se a ordem jurídica impõe ao poder reformador que paute sua atuação conforme determinadas normas, estabelece regramento específico para formação da sua vontade, que há de ser respeitado sob pena de nulidade de seus atos.


De nada valem dois turnos de votação sem um intervalo para aperfeiçoamento de um projeto legislativo

A elaboração de emendas constitucionais sujeita-se a um processo extraordinário, previsto não só no art. 60 da Constituição, mas também nos regimentos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que contêm normas jurídicas complementares dos preceitos relativos ao Poder Legislativo [1] e estabelecem regras de observância obrigatória, das quais – insista-se – defluem direitos e garantias da oposição parlamentar, a começar – ao que aqui interessa – pela positivação de balizas temporais necessárias à eficaz expressão da voz minoritária divergente acerca da alteração constitucional proposta. De nada vale haver dois turnos de votação se não mediar, entre eles, um intervalo útil à possibilidade de alteração do cenário jurídico-político, que pode ser um no primeiro e outro no segundo turno, notadamente quando a decisão parlamentar demanda, para o seu aperfeiçoamento, quorum qualificado em ambientes multipartidários, como o brasileiro (vide, por exemplo, o expressivo número de deputado(a)s que contrariaram a orientação de seus partidos na votação em 1º turno da PEC nº 6, de 2019 – cf. aqui).


Dentro do quadro orgânico-funcional do Estado brasileiro, ao Poder Judiciário, e só a ele, compete, de forma definitiva e irrecorrível, garantir a supremacia constitucional e defender os direitos fundamentais. Se é da incumbência de qualquer órgão judicial a apreciação de lesão ou ameaça a direito – e do Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição –, havendo expressa fixação de turnos distintos de votação de PECs com o objetivo de garantir temperança democrática da decisão reformadora, é lícita e imprescindível a intervenção judicial no seu iter formativo, para assegurar a higidez do direito de oposição parlamentar, acaso suprimido o interstício regimentalmente fixado. Afinal, dos regimentos também dimanam direitos!


O controle judicial dos atos parlamentares praticados ao longo do processo de reforma constitucional tem de compatibilizar a necessidade de preservação da autoridade da Constituição e da ordem jurídica infraconstitucional com a garantia de independência do poder reformador e de defesa das esferas jurídico-políticas das minorias no Parlamento.


Infelizmente, o STF não tem sido reverente à sua missão constitucional garantista do direito de oposição parlamentar, ao eximir-se da tutela, à luz dos regimentos das Casas Legislativas, dos direitos e garantias neles inscritos, como se tais diplomas fizessem parte de um suposto direito corporativo, de efeito interno ao corpo parlamentar e de interesse único de seus membros, e não da sociedade democraticamente representada.


Ao se negar a apreciar lesão ou ameaça a direito provocada por atos parlamentares antirregimentais, entrevê, no texto da Constituição, proibição inexistente. No regime constitucional anterior, eram expressamente excluídos da apreciação judicial: I - os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, os atos do Governo Federal, com base nos Atos Institucionais e nos Atos Complementares e seus efeitos, bem como todos os atos dos Ministros militares e seus efeitos, quando no exercício temporário da Presidência da República, com base no Ato Institucional nº 12, de 31 de agosto de 1969; II - as resoluções, fundadas em Atos Institucionais, das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento de governadores, deputados, prefeitos e vereadores quando no exercício dos referidos cargos; e III - os atos de natureza legislativa expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares indicados no item I (art. 181, I a III). Esse texto não foi repetido pela Constituição de 1988. Forçoso concluir, pois, diante do princípio da inafastabilidade do controle judicial e da inexistência de vedação, implícita ou explícita, à apreciação judicial dos atos parlamentares, que o STF não vem cumprindo o seu papel institucional. Vergando-se à vontade dominante no Parlamento – que, atualmente, encontra-se livre de qualquer controle no que tange à prática de atos fundados em seus regimentos –, o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, longe de se postar equidistante nas disputas políticas travadas no seio do Legislativo, enjeita as máximas da independência e da imparcialidade judicial e inclina-se em favor da (incontrastável) maioria parlamentar.

[1] Os regimentos parlamentares têm compleição e natureza de autênticas normas jurídicas, pertencentes ao ordenamento jurídico geral do Estado, e situam-se no mesmo nível hierárquico das leis, sujeitos, assim, ao controle de constitucionalidade por parte do STF.

 

Derly Barreto e Silva Filho é Procurador do Estado de São Paulo, Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, ex-Presidente do Sindiproesp (biênios 2015-2016 e 2017-2018), ex-Conselheiro Eleito da PGE-SP e autor do livro intitulado “Controle dos atos parlamentares pelo Poder Judiciário” (ed. Malheiros). Seus artigos são publicados todos os dias 18 de cada mês na Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares.




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