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O DIABO NO MEIO DAS RUAS DE MOSCOU, EM MEIO AO REDEMUNHO STALINISTA

Atualizado: 22 de abr.


-Guilherme Purvin-


Patriarchi Prudý é uma praça arborizada de Moscou. Em seu centro há um pequeno lago e ao seu redor, ladeando o quarteirão formado pelas ruas Malaya Bronnaya, Bolshoy Patriarshiy, Ermolaevskiy e Maliy Patriarshiy, uma aleia sombreada por fileiras de tílias normalmente está sempre repleta de transeuntes. Não, porém, no entardecer desse dia quente e primaveril em que Mikhail Aleksándrovitch Berlioz, presidente do conselho administrativo duma importante associação literária de Moscou, caminha com o poeta Ivan Nikoláievitch Ponyriov para explicar as razões de sua insatisfação com uma encomenda literária. Mikhail explica ao poeta que o poema não deveria simplesmente criticar a vida de Jesus Cristo, mas sim ressaltar que o personagem Jesus Cristo nunca existiu e que as histórias a seu respeito não passam de lenda. Nesse mesmo momento, surge à frente dos dois moscovitas um estrangeiro que se interessa pela conversa e, de quebra, anuncia a morte de Berlioz: será decapitado por uma mulher. Não contente com o anúncio bombástico, o estrangeiro completa a profecia com uma informação misteriosa: o azeite já foi derramado. Enquanto os dois amigos avaliam se o estrangeiro é um louco ou um vigarista, o desconhecido lhes relata a entrevista que presenciou, de Pôncio Pilatos com Jesus Cristo, podendo, por isso, lhes assegurar: Jesus existiu de fato. Os amigos se despedem com a convicção de que o sujeito é apenas um louco. Mikhail Aleksándrovitch Berlioz está atrasado para uma reunião na associação literária, corre para a estação de bonde. Quando um vagão chega, porém, ele escorrega numa área onde havia azeite derramado e é decapitado pela roda do bonde conduzido por uma mulher. Pasmo com o que acaba de ocorrer, Ivan Nikoláievitch Ponyriov relaciona os fatos com a fala do estrangeiro supostamente louco e sai desesperadamente à sua caça, com a certeza de que ele é o responsável por aquela morte.


Estas primeiras cenas do romance “O Mestre e a Margarida” dão a exata medida do ritmo alucinante imposto desde a primeira página por Mikhail Bulgákov à sua obra prima. Seu nome era praticamente desconhecido do público brasileiro até o lançamento deste livro. Para nós, pensar em literatura russa do período soviético é, basicamente, pensar na sua decadência e na censura stalinista que impunha o modelo do “realismo socialista” que tantos males fez num país cuja tradição literária revelou ao mundo nomes como Dostoievski, Tolstoi, Puchkin e tantos outros. Da literatura russa do século XX, muito pouco chegou ao público brasileiro. Poderíamos citar a tradução de Ivan Bunin, prêmio Nobel de 1933, nas obras “O Amor de Mítia” e “O processo do Tenente Ieláguin”, na tradução de Boris Schnaiderman; ou, na tradução de Lígia Junqueira, outro prêmio Nobel, Mikail Cholokov, e seu romance “O Don Silencioso”. Isto sem falar, é claro, do conhecidíssimo “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak, proibido na URSS. Ou, ainda, de traduções esparsas de Ilia Ehrenburg ou Isaac Babel em antologias de contos.


É em razão desta penumbra que paira nas letras russas do período soviético que esse magnífico romance de Mikail Bulgákov torna-se uma recompensadora surpresa para o leitor. A trama é desenvolvida em dois níveis: no primeiro, de cunho fantástico e de um humor cáustico, passeamos por uma Moscou invadida pelo diabo e sua trupe formada, dentre outros, por um repulsivo gato gigante, que em nada lembra o gato de Alice no País das Maravilhas. No segundo, intercalado à trama principal mas sem nenhuma conexão imediata com ela, é narrada a história dos últimos dias de Jesus Cristo em Jerusalém. Os personagens que dão título ao romance surgirão na segunda (e mais apaixonante) parte da obra, que se transforma numa fantástica saga sobre uma época em que o amor depende de um pacto com o diabo que transforma amantes em bruxas. Exatamente isto, bruxas com direito a voo em vassoura e tudo mais.


Subvertendo a tradição da literatura fáustica, que vai do Fausto de Goethe ao Dr. Fausto de Thomas Mann, Bulgákov consegue conciliar o surreal dia a dia dos russos preocupados com questões habitacionais e férias ou com a adesão a um modo de pensar oficialmente materialista numa sociedade onde ainda está arraigada uma visão católica ortodoxa da vida a uma paradoxal narrativa sobre uma distante (e negada) Jerusalém onde prevaleceria a razão e a lógica.


É interessante observar um certo paralelismo entre O Mestre e Margarida e uma obra considerada menor na produção de Eça de Queirós, A Relíquia. Aqui, o fanfarrão Raposo relata os seus planos para apoderar-se da herança de sua tia carola, a Titi, empreendendo uma viagem a Jerusalém. Numa inesperada e inexplicável experiência mística, o mulherengo português é transportado no tempo, testemunha os mesmos fatos narrados pelo diabo na obra de Bulgákov. Mais do que testemunhá-los, Raposo consegue trazer para o tempo atual nada menos do que a famosa coroa de espinhos. Como Bulgákov, Eça também se serve da narrativa histórica para criticar a sociedade de seu tempo. As perspectivas, porém, são diversas, não tanto em razão dos motivos que levam um e outro romancista a se valerem de praticamente o mesmo expediente literário e do mesmo cenário para denunciar as mazelas de suas respectivas sociedades, mas sobretudo porque n’A Relíquia, Eça segue a tradição homérica do encantamento sensorial a que se refere Erich Auerbach em sua obra Mimesis: “descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios, locução livre, predominância do primeiro plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto ao humanamente problemático”, ao passo que, n’O Mestre e Margarida, Bulgákov adota a tradição do Velho Testamento, com “multiplicidade de planos, multivocidade, e necessidade de interpretação, pretensão à universalidade histórica, desenvolvimento da apresentação do devir histórico e aprofundamento do problemático” (São Paulo : Perspectiva, 2011- p.20). Assim, o espantoso é que, enquanto em Eça o fantástico é a viagem à época de Cristo e Portugal é o real cruamente pintado com matizes naturalistas, em Bulgákov sucede justamente o contrário: pensar na existência de uma sociedade que migrou de um pré-capitalismo para uma experiência stalinista é mais inverossímil do que reconstituir e compreender a história de Jerusalém sob o jugo do Império Romano.

 

Guilherme Purvin é escritor, autor dos livros de contos "Laboratório de Manipulação" e "Sambas & Polonaises".


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