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O Igarapé do Saravá e a Aporia do Domínio

  • Foto do escritor: Revista Pub
    Revista Pub
  • 21 de jun.
  • 3 min de leitura

-IBRAIM ROCHA-


O conceito de propriedade sempre esteve entrelaçado com o princípio do jus excludendi como característica implícita de sua definição, o que impossibilita que terceiros violem ou acessem um bem sob domínio privado. Mesmo quando esse princípio é limitado pela função social da propriedade, a exclusividade de uso permanece, restringindo-se apenas a certas formas de utilização pelo titular. 


Para combater essa lógica, recorre-se ao conceito de patrimônio ambiental, vinculado à ideia de que os serviços ecossistêmicos pertencem a todos. No entanto, isso não elimina o direito de exclusividade do proprietário privado — pelo contrário, pode reforçá-lo, ao legitimar sua posse como cumprimento da função social. Afinal, o patrimônio ambiental integra-se, de forma "legítima", ao domínio particular. 


Percebe-se, assim, que, apesar da retórica inovadora, esse jogo de princípios não supera o direito de propriedade, mas o fortalece, conferindo-lhe legitimidade social. Não é raro proprietários que não utilizam a terra alegarem que "invasores" causam danos ambientais, violando não apenas seu direito exclusivo, mas também o "interesse público" vinculado ao patrimônio ambiental. Cria-se um argumento circular: a função social (sob o viés ambiental) legitima a proteção da propriedade, mesmo quando esta não cumpre qualquer finalidade coletiva.


Por que isso ocorre? Justamente porque não se rompe com o jus excludendi, que rejeita o compartilhamento do bem por entendê-lo como violação ao direito de propriedade. Essa equação parece insolúvel para o discurso jurídico, gerando uma aporia: o Direito não consegue abandonar o conceito de propriedade, mesmo ao modernizá-lo com a noção de "patrimônio público" — que, no fundo, é outra forma de apropriação da natureza, apenas com regras distintas para acesso e exclusividade. 


Isso nos obriga a pensar uma nova lógica de relação com a natureza, além da dicotomia propriedade pública/privada e da confusão entre "patrimônio público" e "patrimônio privado". A Constituição (art. 225) define o meio ambiente como "bem de uso comum do povo", essencial à qualidade de vida, impondo ao Estado e à coletividade o dever de preservá-lo. O §4º do mesmo artigo declara a Amazônia, a Mata Atlântica e outros biomas como "patrimônio nacional", condicionando seu uso à preservação. No entanto, a ideia de "patrimônio" ainda é uma interface da propriedade capitalista, que nega o compartilhamento e a solidariedade, impondo sempre um uso exclusivo — mesmo que disfarçado de interesse coletivo. 


Superar essa aporia exige um novo aprendizado prático. Um exemplo vem do Sr. Saravá, homem negro de 70 anos, nascido na comunidade quilombola do Acará (67 km de Belém), que vive às margens do Igarapé do Saravá. Ele não cerca o igarapé nem restringe o acesso da comunidade. Quando perguntei sobre o nome do local, respondeu simplesmente: "É uma honra da comunidade, por eu me dedicar ao zelo da Mãe d’Água que aqui habita." 


Acervo pessoal do autor
Acervo pessoal do autor

Enquanto descansava do longo pedal, ouvindo histórias que pareciam vir de um mundo distante, crescia em mim a consciência de que meu mundo é que é inverossímil — um mundo que impõe limites externos à natureza com tal naturalidade que não enxerga o erro de transformá-la em objeto de apropriação, mesmo quando pintado de "social". O Sr. Saravá ensina que o acesso à natureza deve pautar-se apenas pela necessidade do bem-viver, sem exclusividade. No máximo, as regras devem mediar o uso comum para o bem-estar coletivo — afinal, não somos seres encantados como a Mãe d’Água. 


Quem sabe um dia enfrentaremos a aporia da propriedade e do patrimônio. Mas, antes, precisamos superar a era da liberdade do capital, que se revela no colapso ambiental, e que apenas aperfeiçoa o cercamento e a exclusão. Não por acaso, essa mensagem chega por um homem que carrega no nome uma saudação aos orixás. 

 


Ibraim Rocha é advogado, Mestre em Processo Civil (UFPA), Doutor em Direitos Humanos e Meio Ambiente (UFPA), Procurador do Estado do Pará. Ecreve todo o dia 16 do mês.


1 Comment


Sônia Santos
Sônia Santos
Jun 22

Excelente artigo Dr. Ibraim Rocha, reflexão importante para a atual conjuntura. Vou passar a ler todo dia 16 do mês seguinte. Obrigada e parabéns pela matéria de suma importância. Sônia Santos, mestranda UFPA. Faço parte da comissão de direito agrário Belém.

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