O TEMPO DO VINIL COMO FILOSOFIA DE VIDA
- Revista Pub
- 21 de jul.
- 3 min de leitura
-IBRAIM ROCHA-
Em abril de 2022, recebi um presente que me marcou profundamente: meu pai, então com 92 anos, decidiu me presentear com seu antigo toca-discos e uma pequena coleção de discos de vinil. A maioria das músicas eu já conhecia, pois as escutara inúmeras vezes ao longo da vida — na casa da periferia de Belém, durante minha infância, adolescência e juventude. Aquele presente, porém, não era apenas um objeto; era um convite a reviver memórias e, ao mesmo tempo, refletir sobre a passagem do tempo, as escolhas e os limites que moldam nossa existência.
Ouvir um vinil é um ato que demanda paciência e dedicação. Diferentemente do streaming, onde pulamos faixas, criamos playlists aleatórias ou aceleramos músicas, o vinil impõe barreiras físicas: você não pode alterar a ordem das faixas sem interromper a reprodução, nem mudar de lado sem levantar-se e manuseá-lo. Essa materialidade nos obriga a aceitar o fluxo natural da música, a entregar-nos ao ritmo e à narrativa que o artista concebeu. É como se o vinil nos lembrasse de uma regra kantiana esquecida: o espaço e o tempo são limites da razão. Não dominamos o tempo; somos conduzidos por ele.

Meu pai sempre teve uma vasta coleção de vinis e nunca aderiu ao streaming. Não sei como reagiria à facilidade dos algoritmos que sugerem músicas sem esforço. Se, por um lado, o streaming oferece infinitas possibilidades, por outro, talvez nos prive da consciência da escolha. Quando meu pai selecionava um disco, havia um ritual: pegar a capa, ler as notas, colocar o vinil no prato e abaixar a agulha com cuidado. Cada gesto era parte de uma decisão deliberada, um momento de presença que contrasta com a efemeridade das playlists digitais.
É verdade que o vinil não supera o streaming em praticidade. Quem nasceu na era digital dificilmente trocaria a conveniência de acessar milhões de músicas em segundos pela "limitação" dos discos. No entanto, há uma lição filosófica no vinil que merece ser resgatada: a aceitação do tempo como ele é. Na vida, assim como no vinil, não podemos acelerar, pular ou retroceder etapas. As gerações anteriores — os "boomers", como eu — cresceram entendendo que a espera fazia parte do processo. A demora para comprar um disco, a ansiedade pelo lançamento de um álbum, o prazer de ouvi-lo do início ao fim sem distrações: tudo isso moldou uma relação mais paciente com a arte e com o próprio viver.
Sugiro que a geração do streaming experimente, mesmo que uma vez, a imersão do vinil. Não como nostalgia, mas como exercício de desaceleração. Imagine um jovem que, acostumado a pular músicas após 10 segundos, precise esperar o lado A terminar antes de virar o disco. Ou que precise limpar o vinil antes de tocá-lo, cuidando para não arranhá-lo. São pequenos rituais que ensinam respeito ao processo, à materialidade e ao tempo alheio.
Além disso, o vinil representa um processo coletivo de formação cultural. Nas décadas de 1960 a 1980, as pessoas reuniam-se para ouvir discos, trocavam álbuns emprestados e discutiam cada faixa como quem comenta um livro. Hoje, o streaming nos entrega playlists personalizadas, reforçando bolhas individuais. O vinil, em contraste, era uma experiência compartilhada — assim como a vida, que não se vive apenas no próprio ritmo, mas no ritmo do outro.
Em um mundo de instantaneidade, o vinil nos lembra que algumas coisas não podem — e não devem — ser aceleradas. A música, como a vida, ganha sentido quando vivida em sua totalidade, com suas pausas, seus silêncios e seus inevitáveis finais de lado. Talvez aí esteja a maior lição: escutar um vinil é aprender a ouvir a si mesmo e ao mundo, sem pressa, mas com profundidade.
Ibraim Rocha é advogado, Mestre em Processo Civil (UFPA), Doutor em Direitos Humanos e Meio Ambiente (UFPA), Procurador do Estado do Pará. Escreve todo o dia 21 do mês.
Muito bom Ibraim!