- DERLY BARRETO E SILVA FILHO -
Constitui um apotegma do governo democrático representativo a sentença one man, one vote, a significar não somente a mera correspondência numérica entre eleitores e votos em sufrágios, mas o idêntico peso, o igual valor e a mesma influência do voto unitário em pleitos eleitorais e nos processos político-institucionais a eles subsequentes.
A Constituição do Estado Democrático de Direito brasileiro, em seus arts. 1º, parágrafo único, e 14, caput, é assertiva nesse sentido, quando proclama: (i) “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos”; (ii) “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”.
Na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP), entretanto, esse axioma assume outra dimensão: a cada representante eleito, 13 votos! E não por decisão delegatária interna – como se possível fosse – dos parlamentares estaduais, mas por ato cesarista do Presidente daquela Casa Legislativa. Afinal, um deputado pode, por ato monocrático, substituir a manifestação colegiada de uma comissão permanente inteira, como a da Constituição de Constituição, Justiça e Redação (CCJR), composta por 13 membros, atualmente de 11 diferentes agremiações partidárias (PSL, PT, PSB, PSDB, DEM, PL, REPUBLICANOS, NOVO, PSD, PTB e REDE), e isso apesar da clareza prescritiva dos arts. 47 e 58, § 1º, da Constituição da República, que estatuem os postulados da colegialidade e do pluripartidarismo parlamentar, reproduzidos pela Constituição do Estado de São Paulo nos arts. 10, § 1º (“Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações da Assembleia Legislativa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros”), e 12 (“Na constituição da Mesa e das Comissões assegurar-se-á, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos políticos com assento na Assembleia Legislativa”).
Esse superparlamentar, regimentalmente denominado “relator especial”, frequentou as páginas dos jornais e sites que cobriram a pressurosa e escalafobética tramitação da reforma previdenciária paulista em dezembro de 2019 [1], eis que a ele coube, 20 dias após a publicação oficial da Proposta de Emenda Constitucional nº 18, manifestar-se “em nome” da CCJR – que não logrou emitir parecer [2] no exíguo e desarrazoado prazo regimental de 10 dias – sobre os “aspectos constitucional, legal e jurídico” e o “mérito” propriamente dito da proposição. A polêmica decisão do Presidente da ALESP que o designou foi desaguar no Poder Judiciário, que prontamente deferiu liminar em mandado de segurança impetrado por deputado da oposição. “O Parlamento não é mera casa de homologação, mas de discussão e deliberação conscientes e transparentes” – cravou o Desembargador Alex Zilenovski, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça. O imbróglio também ensejou a propositura, em 11 de dezembro de 2019, de arguição de descumprimento de preceito fundamental pelo Partido dos Trabalhadores no Supremo Tribunal Federal (ADPF 637), que pode defenestrar definitivamente essa esdrúxula figura avessa à democracia.
Na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, não existe algo similar ao antidemocrático “relator especial” paulista. Remanesce, no entanto, no art. 293, II, do Regimento Interno do Senado Federal, promulgado sob o manto da Constituição militar outorgada em 1969, o autoritário “voto de liderança”, que, na contundente dicção de Sepúlveda Pertente, castra a plenitude do mandato parlamentar [3], porquanto, no processo simbólico de votação, “o voto dos líderes representará o de seus liderados presentes”, como se se tratasse de uma abstrusa representação sem mandato. Ou seja, pouco importa que os senadores (liderados) participem de uma sessão de votação na qual divirjam explicitamente do líder que de nada valerá a sua discordância face à vontade superior de seu “senhor”.
Tal como o instituto senatorial, o “relator especial” afigura-se, por igual, democraticamente afrontoso, por revelar-se instrumento assecuratório da hegemonia político-parlamentar da Presidência da Casa Legislativa e dos deputados que compõem a sua base de apoio, e por implicar, correlatamente, a supressão da voz e do voto dos demais parlamentares no processo legislativo, processo do qual, em um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro, todos – maioria e minoria, situacionistas e oposicionistas – deveriam efetivamente participar em igualdade de condições, sem limitações ilegítimas.
A propósito, como dito em outro momento [4], a ideia de divisão do trabalho legislativo por comissões preordena-se a garantir a existência, em caráter permanente, de mais uma instância, além do plenário, para o debate e manifestação parlamentares. Essa forma de ordenação estrutural do Poder Legislativo conduz a uma maior clarificação das decisões a serem tomadas. As diversas visões – matizadas pelas naturais dissensões e tensões políticas –, que a representação proporcional dos partidos ou blocos parlamentares encerra, contribuem decisivamente para um profícuo, esclarecido e ponderado trabalho legislativo, qualificado, no caso, pela nota democrática.
A segregação da oposição do debate parlamentar rompe com a ideia de compromisso democrático, cara a Hans Kelsen, que, em preciso magistério de 1924, ainda atual, escreveu: “Todo o procedimento parlamentar visa alcançar um caminho intermediário entre interesses opostos, uma resultante das forças sociais antagônicas. Ele prevê as garantias necessárias para que os interesses discordantes dos grupos representados no parlamento tenham a palavra e possam manifestar-se como tais num debate público. E, se procurarmos o sentido mais profundo do procedimento especificamente antitético-dialético do parlamento, esse sentido só poderá ser o seguinte: da contraposição de teses e antíteses dos interesses políticos deve nascer de alguma maneira uma síntese, a qual, neste caso, só pode ser um compromisso” [5].
Ao conferir predicados de sobrerrepresentação ao “relator especial”, o anacrônico Regimento Interno da ALESP derrui a máxima do governo democrático representativo (one man, one vote), cala o debate, amordaça a voz divergente, impede aperfeiçoamentos legislativos, consagra a desigualdade entre os mandatos dos representantes políticos (e, por conseguinte, entre os próprios eleitores legitimamente representados no Parlamento) e reentroniza práticas aristocráticas e oligárquicas, como a do voto plural [6], conferido em função de atributos pessoais (estado civil, patrimônio, instrução, etc.), que deveriam ser inadmissíveis na ambiência de um Estado republicano.
Ora, já se disse em outra oportunidade [7], à luz dos arts. 45, caput, e 46, caput, da Constituição da República, e 9º, caput, da Constituição do Estado de São Paulo, que o Poder Legislativo rege-se, no que tange à sua composição e funcionamento, pelo princípio da igualdade. Todos os seus integrantes são iguais; todos exercem a representação política da sociedade; todos têm os mesmos direitos, deveres, prerrogativas, vedações, responsabilidades e incompatibilidades. A igualdade constitucional dos parlamentares radica-se, notadamente, no valor do seu voto, que é idêntico ao dos demais; projeta-se na possibilidade de participar dos debates e votações, que é imprescindível ao desempenho das atribuições inerentes ao mandato político. O peso de cada representante nas decisões coletivas tomadas é o mesmo, sem importar quantos votos recebeu na última eleição, quantos mandatos já exerceu ou a que partido está afiliado.
Como órgãos fracionários da função legislativa que são, os parlamentares recebem da própria Constituição a competência para discutir e votar proposições submetidas à consideração do Parlamento. Inexistindo previsão constitucional que autorize a transferência do direito de voto nas comissões e no plenário – que é pessoal de cada deputado –, é inescapável a conclusão de que os arts. 61, § 2º, 165, II, 183, § 1º, 227, § 1º, 253, § 5º, e 257, parágrafo único, do Regimento Interno da Assembleia Legislativa paulista, são incompatíveis com a Constitituição da República.
[1] Vide, por todos, https://www.conjur.com.br/2019-dez-06/desembargador-suspende-proposta-reforma-previdencia-paulista.
[2] Parecer, diz o art. 71 do Regimento Interno da ALESP, é o pronunciamento de Comissão sobre matéria sujeita ao seu estudo.
[3] Voto de liderança – institucionalidade, in Revista de Direito Público, nº 92, outubro-dezembro de 1989, p. 118.
[4] Derly Barreto e Silva Filho, Controle dos atos parlamentares pelo Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 180.
[5] A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 129.
[6] Joseph Barthélemy e Paul Duez, Traité de droit constitutionnel. Paris: Editions Panthéon-Assas, 2004, p. 345 a 348.
[7] Derly Barreto e Silva Filho, A presidencialização do Poder Legislativo e a parlamentarização do Poder Executivo no Brasil, in Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 17, nº 193, mar. 2017, p. 26, nota 52.
Derly Barreto e Silva Filho é Procurador do Estado de São Paulo, Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP e autor do livro intitulado “Controle dos atos parlamentares pelo Poder Judiciário” (Malheiros Editores).
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