Políticas públicas sociais redutoras de desigualdades versus desinformação
- Revista Pub
- 22 de ago.
- 5 min de leitura
O que nos revela o caso do vídeo “viral” do casal de influenciadores catarinenses contrários aos programas sociais
-LEANDRO BERNARDO-

Repercutiu há algumas semanas nas redes sociais vídeo de um casal morador de Santa Catarina em que apresentam uma espécie de lista de condutas mínimas a serem seguidas por potenciais migrantes de outros lugares do país, como condição de serem considerados bem-vindos àquele estado do sul.
Chama a atenção, em especial, a exigência que o casal faz de que o novo morador não seja dependente do “assistencialismo estatal”, uma vez que, segundo sustentam, naquele estado moram pessoas detentoras de uma cultura (de origem europeia) de trabalho e ordem.
O vídeo se destaca por estampar um grande preconceito pelos programas de assistência social e por políticas redutoras de desigualdades, como se fossem direcionadas apenas a pessoas preguiçosas e de algumas regiões em particular do país. A história guarda situação curiosa: constatou-se que o casal foi beneficiário de programa assistencial no período da pandemia da COVI-19 (fato confirmado pelo casal em outros vídeos posteriores).
Infelizmente, as falas não são exceções e refletem a visão de importante parcela da sociedade brasileira, e, por isso, torna-se fundamental combatê-las, em especial a partir da demonstração da relevância daquelas políticas sociais redutoras de desigualdades para o desenvolvimento da sociedade.
As políticas públicas sociais possuem assento constitucional. O texto constitucional elege como fundamento da República a dignidade da pessoa (art. 1º, III) e objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), promoção do bem de todos, sem preconceitos ou discriminação (art. 3º, IV). Outros dispositivos impõe o dever do poder público em efetivas as políticas públicas voltadas aos grupos mais marginalizados.
Ante o caráter de supremacia do texto constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, reconhece-se, como consequência – pelo menos nas últimas décadas -, a imposição da primazia da Constituição sobre as demais normas do sistema e, dessa forma, resta inescapável a vinculação de todos os poderes constituídos ao seu comando e a necessidade de garantir efetividade aos direitos fundamentais ali previstos.
Para além da discussão acerca da adequação jurídica das políticas públicas sociais, digno de nota a importância de programas sociais, em especial aqueles de assistência para a retirada de grandes camadas da população da situação de pobreza extrema, e que permitiram ao Brasil sair do “Mapa da Fome” no presente ano, como atesta relatório realizado pela organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU), com a redução de pessoas em risco de subnutrição ou de falta de acesso à alimentação suficiente para menos de 2,5% do total da população brasileira, em um país marcado pela desigualdade social histórica.
Outro aspecto que merece destaque em falas como a do vídeo acima referido diz respeito ao provável desconhecimento de grande parte da sociedade que o poder público realizou, ao longo da história, sobretudo a partir do período final do império e início da república, grandes programas que poderiam ser reconhecidos como assistencialistas, embora voltados ao favorecimento do bem-estar de grupos específicos, não extensíveis ao restante da população.
Cite-se, por exemplo, os programas de colonização promovidos pelo estado e que buscavam incentivar a ocupação de áreas rurais por imigrantes, sobretudo vindos da Europa – em condições de extrema pobreza. Como nos ensina Alberto Passos Guimarães, na obra “Quatro séculos de latifúndio”, em 1907 “o Governo Brasileiro, em sua política de facilidades à imigração, chegaria ao absurdo de proibir, por um decreto, a venda de terras nos núcleos coloniais a brasileiros, em proporção maior de 10%”[1].
Tratou-se de clara e direcionada política discriminatória do estado brasileiro, ao negar o direito de acesso à terra aos brasileiros de então, em grande maioria ex-escravizados ou seus descendentes, no intuito de garantir braços livres para serem usados como mão-de-obra pelos grandes latifundiários, ao passo que se buscou garantir um processo de europeização ou branqueamento da sociedade brasileira.
Sobre o assunto, Abdias do Nascimento, em “O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”, denuncia que as leis de imigração posteriores ao período abolicionista tiveram o claro intuito de “erradicação da ‘mancha negra’ na população brasileira”[2].
No âmbito do acesso à educação, as políticas de cotas em estabelecimentos públicos de ensino, reconhecidas na atualidade como importante ferramenta de política reparatória, somente passaram a ser implementadas em favor das classes menos favorecidas em inícios dos anos 2000[3].
Por outro lado, estratos mais favorecidos da população já contavam com políticas de cotas em seu favor. Cite-se como exemplo aquela criada pela lei federal 5.465/68, chamada “Lei do Boi” - que esteve em vigor entre os anos de 1968 e 1985 – e que garantia, dentre outras benesses, a reserva de 50% das vagas em cursos superiores de Agricultura e Veterinária, de instituições mantidas pela União (universidades federais), a candidatos agricultores ou a filhos desses e que, na prática, beneficiou detentores de latifúndios e seus parentes.
Observe-se que nos anos 1960, período da aprovação da referida lei, cerca de 95% daqueles que haviam concluído ensino superior eram brancos[4], fato que permite inferir o caráter excludente da educação à época e que contou com aquela política em sentido inverso à busca de inclusão social.
Outras políticas como as acima apontadas e o acesso direto a relevantes fatias do orçamento público, dirigidos a grupos favorecidos, estiveram presentes na história do Brasil, e inacessíveis às classes historicamente excluídas no país.
Assim, nada mais justo e necessário que o aprofundamento de políticas públicas sociais, a fim de garantir maior dignidade à vida das pessoas que ao longo da história estiveram sempre à margem de qualquer benesse advinda do poder público.
Notas
[1] GUIMARAES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
[2] NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.
[3] BERNARDO, L. F. Direito antidiscriminatório e políticas afirmativas raciais: a atuaçãodo stf na garantia de políticas públicas de cotas raciais na educação universitária pública e a cargos públicos em favor da população negra. In: Eloi Martins Senhoras; Ana Célia de Oliveira Paz. (Org.). Políticas Públicas: Sujeitos e Agendas Pós-Modernas. 1ed.BOA VISTA: IOLE, 2023, v. , p. 159-20. Disponível em: https://www.academia.edu/110647244/DIREITO_ANTIDISCRIMINAT%C3%93RIO_E_POL%C3%8DTICAS_AFIRMATIVAS_RACIAIS_A_ATUA%C3%87%C3%83ODO_STF_NA_GARANTIA_DE_POL%C3%8DTICAS_P%C3%9ABLICAS_DE_COTAS_RACIAIS_NA_EDUCA%C3%87%C3%83O_UNIVERSIT%C3%81RIA_P%C3%9ABLICA_E_A_CARGOS_P%C3%9ABLICOS_EM_FAVOR_DA_POPULA%C3%87%C3%83O_NEGRA
[4] SILVA, T. D. Ação afirmativa e população negra na educação superior: acesso e perfil discente. Rio de Janeiro: IPEA, 2020.
Leandro Ferreira Bernardo, Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Procurador Federal, membro do IBAP. escreve todo o dia 22 do mês
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