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Novo álbum de Arnaldo Antunes resgata o melhor na música brasileira

  • Foto do escritor: Revista Pub
    Revista Pub
  • 24 de mar.
  • 4 min de leitura

-GUILHERME PURVIN-


Acaba de ser lançado Novo Mundo, o mais recente trabalho de Arnaldo Antunes. Ou talvez nem devêssemos mais usar o termo “álbum”, já que hoje todo produto sonoro parece existir apenas na forma imaterial — a não ser que estejamos dispostos a desembolsar cerca de mil reais por um LP de vinil, num fetiche retrô que ainda exigirá de nós uma caça por uma vitrolinha portátil. E, mesmo assim, será só para ver girar aquele disco que, paradoxalmente, nos prende ao tempo.


Mas deixemos os formatos de lado. O importante é que se trata de um conjunto de doze novas composições — e surpreendentemente bom. Arrisco-me a dizer que pelo menos seis delas figuram entre o que há de mais relevante na música brasileira dos últimos quinze anos.


Logo de início, somos tomados pela faixa-título, Novo Mundo, com citação do poeta carioca MUNDANOH e participação do rapper baiano Vandal, com quem compartilha a autoria. O que ouvimos ali não é apenas um experimento rítmico ou poético, mas uma radiografia direta e inquietante da nossa realidade — um “rapsódico manifesto” que mistura crítica social, poesia concreta, beat eletrônico e ironia linguística:


cada vez mais plástico e menos água

cada vez mais casca e menos substância

o veneno apenas fortalece a praga

e a nau da insensatez sem freio avança


A letra, que segue como uma avalanche de imagens e constatações duras, revela um Arnaldo em plena forma — lúcido, combativo e ainda interessado em confrontar as contradições do presente. Ele transita entre a distopia digital, o colapso climático, a vigilância algorítmica e a banalização da violência, compondo um retrato cru e preciso do que insiste em se chamar de “novo mundo”.




O autor e Arnaldo Antunes, em lançamento de livro- Acervo do autor
O autor e Arnaldo Antunes, em lançamento de livro- Acervo do autor

E, de fato, há algo profundamente simbólico nesse nome. O novo mundo não é mais o da aventura dos navegadores, nem o da utopia do progresso: é o da desinformação radioativa, dos meets sem romance, da memória dissolvida em nuvem. Um mundo que se desintegra “no próximo segundo”, muito mais aterrador do que o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Que, por sua vez, pinçou o título de seu clássico distópico de uma passagem de A Tempestade, de William Shakespeare: a ingênua Miranda, que, vivendo numa ilha onde seu pai fora desterrado, até então não conhecia senão o progenitor e um íncola escravizado e que, ao se deparar com europeus que haviam sido responsáveis pela desgraça do desterro, considera-os todos belíssimos e, assim, exclama que esse novo mundo seria admirável. Só que não...


A colaboração com Vandal intensifica esse mergulho. Com seu flow espinhoso e criativo, ele escancara — em versos grafados com h's e z's, numa espécie de cripto-fonética digital — a perda de sentido no consumo, na política, na fé, nos afetos. Tudo é dado, monetizado, descartado. Tudo é ruído e sobrecarga:


seuh lazerh teh komprometeh

suah rendah universalh

futebohl agorah ezh beth


É poesia, é denúncia, é sample de um Brasil que agoniza e dança.


O que impressiona em Novo Mundo não é apenas a qualidade das letras, mas o modo como Arnaldo continua apostando na canção como veículo de pensamento. Num tempo em que muitos artistas optam pelo niilismo ou pela celebração vazia, ele insiste no gesto crítico, estético e perturbador. Sua música não entrega respostas, mas tensiona perguntas.


Claro, o álbum vai além da faixa-título. Há momentos de lirismo, de delicadeza, de ironia. Por exemplo, a canção subsequente, O amor é a droga mais forte:


o amor é a droga mais forte

que vicia logo no flerte

e o que vem depois se reparte

cicatriz por cima do corte

o destino faz sua parte

fora isso só mesmo a sorte

mais que isso só mesmo a morte


É poesia da mais elevada qualidade. As rimas nas sete únicas estrofes da canção têm uma sonoridade intensa e seguem uma linha melódica ascendente, terminando com a frase “só mesmo a morte” dita com raiva.


Há ainda duas deliciosas parcerias de Arnaldo Antunes com David Byrne, ex-líder dos Talking Heads, músico fundamental para a redescoberta do brasileiro Tom Zé nos anos 1990. Byrne é o tipo de artista que fez um bem danado à MPB, especialmente ao tirar do ostracismo o maluco genial de Irará e esfregá-lo em nossa cara: o que acontecia que não percebíamos sua genialidade? Pois agora é Arnaldo quem o traz de volta em Body Corpo e Não dá para ficar parado aí na porta, um libelo à tomada de decisão.


Tire o seu passado da frente talvez seja a faixa com a pegada mais intensa de rock, remetendo aos melhores tempos dos Titãs. E aí se instala a ironia entre meio e mensagem: ao mesmo tempo em que proclama que devemos deixar o passado para trás e acreditar que tudo pode ser diferente, Arnaldo está justamente resgatando suas origens musicais.


Há ainda uma parceria com sua velha amiga Marisa Monte, Sou Só, que remete à fase dos Tribalistas, além de uma simpática homenagem a Erasmo Carlos. Trata-se de uma letra inédita do Gigante Gentil sobre sua mãe, musicada por Arnaldo, numa reverência tanto à fase do “ié-ié-ié” (vale lembrar que o nome original da banda era Titãs do Ié-Ié-Ié) quanto ao álbum A Casa É Sua.


O que Arnaldo Antunes nos oferece, com esse novo conjunto, não é consolo — é consciência. E talvez por isso Novo Mundo seja, paradoxalmente, um dos álbuns mais esperançosos do ano: porque não há gesto mais radical de esperança do que olhar com nitidez para o presente e, ainda assim, cantar.


 

Guilherme José Purvin de Figueiredo, pós-doutorando junto ao Depto. de Geografia da FFLCH-USP, Coordenador Internacional do IBAP e da APRODAB, é escritor e Professor de Direito Ambiental. Sua coluna na Revista PUB Diálogos Interdisciplinares é publicada todo dia 24.



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