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Hermeto jura bandeira

  • Foto do escritor: Guilherme José Purvin de Figueiredo
    Guilherme José Purvin de Figueiredo
  • 24 de set.
  • 6 min de leitura

-Guilherme Purvin-


Aos 15 anos de idade, eu meus amigos Marcos Alcyr, Shazan, Fernando Veloso, Orlando e Laércio, cansados de ouvir sucessos norte-americanos das rádios Excelsior e Difusora, começamos a desvendar o universo da música progressiva. A nossa bíblia era um tabloide chamado Rolling Stone, que não tinha uma relação tão evidente com a versão original ou com o que existe hoje. Editado pelo Luis Carlos Maciel, contava com a participação de Ana Maria Bahiana, Ezequiel Neves e um pessoal que também escreveu para o Pasquim e o Bondinho. Ali descobrimos Meddle, do Pink Floyd, Pictures at an exhibition, do trio Emerson, Lake & Palmer, Islands, do King Crimson, Thick as a brick, do Jethro Tull. Mas não desprezávamos a música brasileira, de forma alguma. Das bandas de rock, nossas prediletas eram Os Mutantes, O Terço, Som Nosso de Cada Dia e o trio de rock rural Sá, Rodrix & Guarabyra.


Em setembro daquele ano de 1972, a TV Globo já havia vencido a TV Record em audiência e avançava numa área na qual a estação de Paulo Machado de Carvalho até então tinha sido inigualável: os festivais de música.

O VII Festival Internacional da Canção foi marcante para a gente. Além de Cabeça, do Walter Franco, torcemos para Mande um abraço pra velha, dos Mutantes, Viva Zapátria, do Sirlan, e Serearei, do Hermeto Paschoal. As três canções subvertiam totalmente os padrões da música popular.


Cabeça, inteiramente vocalizada, era uma construção sonora sobre a frase "saiba que a cabeça explode, irmão... ou não?", repetida dezenas de vezes de forma sobreposta em looping. Recebeu uma vaia homérica e consagrou Walter Franco, principal influenciador do disco Araçá Azul, do Caetano Veloso.


Mande um abraço pra velha, dos Mutantes, era um hilariante rock progressivo que mandava um recado para a Rede Globo, com frases como "Já faz tempo paca que eu não vinha aqui cantar num festival... Eu não vou ganhar, quem sabe até eu vou perder ou empatar? Nós não estamos nem aí, nós queremos é piar. Nós estamos é aqui, e sua mãe onde é que está?". Aqui, o rock à Yes transmutava inesperadamente em samba e dizia: "Mande um abraço pra velha, diga pra ela se tratar". Gostamos tanto da canção que, no Festival Interno do Colégio Objetivo daquele mesmo ano inscrevemos "Mutação", composição do Anderson França e minha, com a mensagem: "Não me prendo a nenhum sistema e nem me interessa esse festival". A canção dos Mutantes foi desclassificada. A nossa versão colegial também.


A terceira canção foi Viva Zapátria, mas dessa eu já falei há algum tempo aqui na Revista Pub. Por isso, passo para a quarta, que é a razão principal deste artigo: Serearei, do Hermeto Paschoal, uma verdadeira sinfonia com direito a porcos grunhindo no palco e uma vaia tão intensa quanto à que o público de imbecis que lotava o Maracanãzinho deu para Walter Franco e Mutantes.



Arte - Aloisio Van Acker
Arte - Aloisio Van Acker

Até então, eu tinha uma certa simpatia pelo Hermeto, por conta de sua participação bem comportada no Quarteto Novo, acompanhando Jair Rodrigues em Disparada, no festival da Record. Mas agora era diferente: Hermeto expunha sua estrondosa capacidade musical, numa radicalização de Stravinski e free jazz, com um tempero inteiramente brasileiro, de Arapiraca.


Em muitos sentidos o ano de 1972 foi marcante para mim, a começar pelo fato de que finalmente eu declarava a minha independência do Ipiranga, passando a estudar no Objetivo da Av. Paulista, onde recebi minha iniciação psicodélica — eu que, até então, não tinha o costume sequer de beber uma caipirinha.


Musicalmente, porém, o mais significativo foi ouvir ao vivo a música de Hermeto Paschoal no auditório da Gazeta. Lembro-me dele interromper em dado momento uma música quando já havia se iniciado há uns cinco minutos. Motivo: quando a flauta ou a escaleta (um teclado para sopro) atingia determinada nota, alguma coisa no teatro vibrava. Hermeto ficou uns 15 minutos nesse trabalho de detetive acústico, procurando descobrir que objeto estaria vibrando por ressonância natural. Não se tratava, porém, de uma interrupção causada por perfeccionismo ao estilo de um João Gilberto, mas de uma curiosidade de criança. Hermeto, na verdade, queria de todo jeito encontrar aquele misterioso parceiro instrumental que resolvera participar de sua performance:


"Toca!".... Fiuuu... "Vocês ouviram? O que está vibrando?"


1974 foi o ano de alistamento militar. Apresentei-me na circunscrição competente e tive a sorte de receber dispensa de incorporação por sorteio do número final de meu certificado. Foi bom pois, se eu tivesse sido convocado e acaso acontecesse de vir a receber uma transfusão de sangue, sofreria um choque anafilático, pois os serivços laboratoriais do Exército registraram que meu tipo sanguíneo era B positivo (constatação que me levou a suspeitar que havia sido adotado, pois meu pai tinha sangue A positivo e minha mãe, O negativo). Mas isso é uma outra história. Ocorre que, mesmo dispensado de servir à pátria amada, agora sob o comando de Ernesto Geisel, todos tínhamos que prestar juramento à bandeira.


Trata-se de uma cerimônia solene, espécie de batismo ou crisma nacional, que tem, entre outros objetivos, nos fazer lembrar que devemos fidelidade ao Brasil e, portanto, que estaremos sujeitos a responder criminalmente caso venhamos a conspirar contra o país, digamos, nos Estados Unidos, ou saiamos com bandeiras estadunidenses ou israelenses nos festejos do sete de setembro.


A cerimônia ocorria no Estádio do Pacaembu, nome que se dava à atual Arena Mercado Livre. Milhares de adolescentes entraram no estádio e, em obediência a um comando emitido pelos altofalantes, nos erguemos nas arquibancadas e gerais do estádio. Quando olho para a minha direita, encontro ninguém menos do que meu ídolo musical. O albino Hermeto Paschoal, inconfundível com seu enorme cabelão branco e óculos fundo-de-garrafa, estava firme como um soldadinho ao meu lado, muito embora fosse 21 anos mais velho do que eu. Atrás dele, dezenas de adolescentes faziam arruaça, atirando aviõezinhos de papel para ficarem espetados em sua cabeleira e Hermeto, aborrecido, protestava como criança já habituada a sofrer esse tipo de bullying. Começaram os acordes e todos, perfilhados, iniciamos a cantoria: "Ouviram do Ipiranga as margens plácidas..." Ao final do hino, o capitão no microfone anunciou: "Muito bem, o ensaio foi ótimo. Dentro de mais cinco minutos, iniciaremos a cerimônia". Hermeto ficou injuriado:


"O que? Era só um ensaio? E eu dei minha alma para cantar afinado, não errar nada!".


Quando contei a todos quem havia sido meu companheiro de juramento à bandeira, os amigos não acreditaram. Ninguém jura a bandeira com 38 anos de idade. Ninguém, vírgula. Crianças nasciam em Arapiraca à revelia dos registros civis e de outros formalismos. Muito provavelmente Hermeto nunca se tocou que precisava alistar-se no exército, não sei. Ou, quem sabe, tendo se alistado, descobriu muito tempo depois que ficou faltando essa formalidade. Seria preciso realizar um trabalho de detetive para descobrir a razão de ser de sua presença ali no Pacaembu em 1974.


No começo deste ano de 2025, foi anunciada a realização de um show de Hermeto Paschoal no Blue Note do Conjunto Nacional. Corri para comprar quatro ingressos — ia com a Ana Cristina, o Marcos Alcyr e a Anne. Na véspera, porém, recebi o aviso de que o show havia sido suspenso por problemas de saúde de Hermeto. Guardei os ingressos para a redesignação do show. Passou um mês, ele foi novamente suspenso. Frustrado, pedi o reembolso dos ingressos. No final de junho, em San Sebastián, no Pais Basco, os cartazes anunciavam o show de Bruce Springsteen. E, no dia 25 de julho, o de... Hermeto Paschoal! Sacanagem, pensei. Hermeto cancela show em São Paulo e vai tocar em San Sebastián.


De novo em São Paulo, fomos os quatro a uma apresentação do Egberto Gismonti no mesmo Blue Note, acompanhados da Kyky, sua fã ardorosa. O show foi curtíssimo, a acústica foi péssima, Egberto apresentou-se de costas para a gente o tempo todo. Ao final, entrei numa discussão com a Kyky, dizendo a ela que não considerava Egberto um gênio como Hermeto e que há um encontro dos dois disponível no youtube que mostra que não deu liga. Para não dar liga com Hermeto, a pessoa tem que ser muito pouco flexível. E Egberto é uma rima mas, embora grande músico, não é um Hermeto.



Guilherme José Purvin de Figueiredo, professor de Direito Ambiental e Procurador do Estado/SP Aposentado, é graduado em Direito e Letras pela USP, Doutor e Mestre, Pós-Doutorando junto à FFLCH-USP, desenvolvendo pesquisa no âmbito da Geografia, Literatura e Arte. Membro do IBAP. Escreve regularmente todo o dia 24 do mês.



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