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POSTE PELO PASSEIO PÚBLICO

Atualizado: 29 de dez. de 2020

- Ana Cristina Bonchristiano -


Saímos de casa atrasadas. Chovia e o percurso até a galeria seria de mais de uma hora. Já passava das dezoito e a inauguração estava marcada para às dezenove. Nossa produção foi rápida, com roupas extravagantes, maquiagem carregada e bijuterias exóticas, imaginando imprensa e fotógrafos na inauguração.


Desde a formatura em artes visuais, há dois anos, busco expor minhas produções, mas, nunca tive obra em espaço tão badalado. Não sobrevivo de arte e dou aulas de inglês para completar o orçamento. Minha parceira é professora e banca o aluguel. A montagem da instalação foi difícil: o poste era alto e não cabia no carro. Com a ajuda de amigos, carregamos o poste por cerca de dez quilômetros, entre o depósito de ferro velho no Ipiranga até a galeria nos Jardins. Havia encontrado por acaso aquele poste, quando paramos para consertar o carro numa oficina. Comprei e reservei, combinando de buscar na semana seguinte. Com poucas mensagens e uma fotografia da encrenca, no grupo de whatsapp, consegui a ajuda para o transporte do poste pelas ruas da cidade. Tivera a inspiração a partir do livro de contos que lera na praia. Enquanto carregávamos, íamos conversando e contando piadas, mas, depois de poucos quilômetros, na altura do centro, nosso cansaço nos mantinha mudos e suados. Os buracos nas calçadas, onde estas existiam, nos exigiam esforço dobrado: além de olhar para a frente, tínhamos que baixar a cabeça, sob pena de tropeços e quedas. Em alguns lugares, nem calçada havia e aí era pela avenida mesmo - íamos em fila, carregando o poste, encostados nos muros das casas e prédios para não sermos atropelados. As pessoas, de dentro dos carros ou andando pelas ruas, nos olhavam entre espanto e pena, mas chegamos à Bela Cintra, quase escurecendo.


Arte: (c) Guilherme Purvin

Hoje, saímos com pressa e sem jantar, contando com comes e bebes do vernissage. Convidamos a galera, embora ninguém tivesse grana para comprar nada. Iriam pelo “boca-livre”. Abri o portão e molhei os cabelos, que arrepiaram. A chuva era torrencial, mas não dava para esperar. Em menos de quinze minutos, deixamos a estrada vicinal e pegamos a rodovia. A pista estava com poças e não as visualizávamos, antes de passarmos por cima e espirrarmos água para todos os lados.


A entrada na galeria com o poste fora uma aventura com cenas de circo e malabarismos, mas, depois de várias manobras, não deu certo porque o pé direito da sala não tinha altura suficiente. Finalmente, fincamos o poste no jardim interno. Paguei cervejas para todos, no bar em frente. Rimos das dificuldades e do sucesso do transporte, apesar dos pés machucados e dos braços e pernas doloridos. Depois de molhar a garganta e forrar o estômago, voltei à galeria para terminar de montar minha obra, já que a abertura da exposição seria no dia seguinte. O pessoal ficou no bar e de lá iriam para alguma balada, se aguentassem. Estava ansiosa e precisava terminar a montagem da instalação. Ao redor da base, coloquei, aberto na página 146 do livro de George Saunders, o conto “Estacas” e “alguns amuletos que encontrei nos brechós: medalhas militares, ingressos de teatro, velhos abrigos de moletom, bisnagas de maquiagem. Pintei o poste de amarelo escuro e cobri-o com cotonetes. Ao seu lado, finquei seis cruzes feito estacas e estendi um barbante entre o poste e as estacas, colando com fita adesiva nesse varal cartas com pedidos de perdão, admissões de erro, apelos por compreensão, tudo escrito com letra convulsa em fichas de arquivo. Pintei um cartaz que dizia AMOR e pendurei-o no poste, e outro que dizia PERDÃO?”


Estou aqui olhando o teto amarelo do carro com o levantar das minhas sobrancelhas. Do lado direito, o vidro embaçado não me permite ver a parte externa e, do esquerdo, vejo seu rosto, olhos fechados, cabeça para baixo, suspensa pelo cinto, além de um fio vermelho de sangue escuro escorrendo no seu rosto. De cabeça para baixo, abro mais meus olhos, sinto minhas pernas soltas e tenho a sensação de ser uma boneca de pano. Não sei se você respira, mas está como eu, de ponta-cabeça. Não caímos fora do carro porque o cinto nos prende. Silêncio total aqui dentro. Fixo o olhar numa gota d’água parada no vidro. Viro a cabeça e olho um pouco para o lado: vejo no vão entre os bancos o celular caído, mas ainda com luz. Não sei se consegui enviar a mensagem sobre nosso atraso para a galerista, em resposta à dela que nos avisava sobre os visitantes passeando pelo jardim, intrigados com minha instalação, coberta por um grande véu opaco. Imagino que muitos estariam curiosos com aquele alto objeto fálico, coberto e imóvel. Dei o título: Silenciamento ou a falta da fala e da escuta. Ouço barulho de sirenes e vozes de pessoas se aproximando. O vidro embaçado não me permite ver quem está batendo no vidro. Meus olhos estão pesados. Sinto um gosto salgado de um líquido quente que escorre do meu nariz e entra pela minha boca. Tudo fica escuro.

 

Ana Cristina Bonchristiano - Formada em Direito e em Letras pela USP e associada do IBAP, a autora é Juíza de Direito e foi uma das vencedoras do Concurso de Contos de 2020 da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares.



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