-MARÍLIA GONÇALVES-
Em 2005 Sérgio Bianchi lançou “Quanto vale ou é por quilo?” O filme traça um paralelo entre duas histórias; a primeira, no Brasil do século XIX durante a escravidão. A segunda, século XXI, já num período democrático mas nem por isso justo e menos escravocrata. O título do filme me intrigou desde sempre. No filme, a história se concentra na exploração do homem entre as classes e dentro de uma mesma classe, uns como forma de lucrar e outros como forma de sobreviver.
A concepção de valor é um dos meus questionamentos eternos. Quanto vale? A composição do preço de qualquer coisa que se ponha à venda, parte de uma somatória dos valores de insumos, tempo, força de trabalho, energia elétrica/gás/combustível. Chega-se ao número do quanto custa. Mas quanto vale? Existem parâmetros para a precificaçao de um sapato, um móvel, um prato de comida. Outras mercadorias merecem julgamentos muito mais subjetivos. Não se calcula o preço de um quadro pelo investimento das horas trabalhadas, mais tintas e telas.
Acordei cedo e antes mesmo de tomar toda minha sagrada xícara de café (a gente se apega a pequenos e preciosos rituais que justificam a rotina), me deparei com um anúncio de uma nova plataforma de delivery que oferecia pratos de almoço a 2,99. Dois reais e noventa e nove centavos!
Poucas coisas custam tão pouco. Três pães franceses. Meio pastel de feira. Não, meio pastel custa mais. Um bife a cavalo não pode custar 2,99 com frete grátis. Custa mais e vale mais.
Atiçou sua curiosidade, seu senso de oportunidade?
O valor monetário é uma parte insignificante na guerra de poder que as grandes corporações travam o tempo todo. Quando se concorda em pagar um preço não justo por algo, é certo que alguém não foi remunerado decentemente? Talvez sim, talvez não. Mas de alguma forma alguém está pagando parte dessa conta e sabe exatamente porque o faz. Sabe e planeja o lucro futuro, quando a concorrência estiver morta e o mercado estiver ávido e domesticado. Não existe almoço grátis, a conta um dia chega e provavelmente com juros.
Depois do susto, servi-me de outra xícara de café. Entrei na minha cozinha com o respeito que eu sinto ser necessário, abasteci a mis-en-place com os ovos orgânicos indispensáveis, cortei cebolas, descasquei alhos, botei um feijão demolhado com calma para cozinhar, animado por folhas de louro. Quando a cozinha estava em total animação e ruidosa alegria, minha ira evaporou.
MARÍLIA GONÇALVES é escritora e cozinheira.
Comments