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UTOPIA NO SÉCULO XXI ?

-IBRAIM ROCHA-


Foto - Pixabay

Nascido no século XX, aguardei ansioso pela chegada do ano 2001, em que o mundo acabaria ou se realizaria o sonho do avanço tecnológico de inspiração futurista brilhante ao estilo Jetsons, e certamente não imaginaria a falta de perspectiva utópica que avassala o século XXI, em que o blade runner não é a caça de replicantes rebeldes, mas a destruição da natureza e as perspectivas sociais da maioria dos seres humanos sob o fio condutor do modelo capitalista-neoliberal.


Quando o alerta da ONU demonstra que não foram cumpridas metas de proteção da biodiversidade fixadas há uma década e que a única possibilidade de reverter a tendência de extinção em massa de seres vivos exige designar 30% da superfície da Terra para proteção até 2030 e 50% até 2050, toda crença vira um sonho quase impossível neste terrível cenário causado por pura ação humana. E o desalento é maior quando se vive num país que, possuindo sob sua tutela cerca de 60% da Amazônia internacional, tem uma direção política de incentivo a práticas econômicas que flertam em contínuo com o desmatamento, cujo o dia do fogo em 2019, nos aproximou mais do ponto de irreversibilidade da floresta se atingir 25% de área desmatada.


O modelo econômico do século XXI não favorece a liberdade dos trabalhadores, ao contrário, cria formas de precarização onde as jornadas de trabalho se elevam sob o mito do empreendedorismo e da falácia da uberização, criando jornadas intermináveis. Tomas Morus, em 1516, sem imaginar as forças produtivas de hoje, mas pensando no trabalho como forma de garantia da liberdade humana, advogava na sociedade ideal a jornada de 6 horas, com 3 horas de trabalho, intercaladas com duas horas de repouso, com garantia de 8 horas de sono (MORUS, 1997, 77).


O Manifesto do Partido Comunista, de 1848, outro modelo de utopia, não prevê o limite da jornada de trabalho, como mote de ação do proletariado, apenas adota a obrigatoriedade do trabalho para todos no processo de implantação da sociedade comunista, com a mudança do objetivo da produção de gerar bem estar, e não o lucro, a jornada como forma de controlar o resultado do trabalho não faria sentido, o que importa é o resultado e a jornada é consequência da necessidade de trabalho para “uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (Marx, Engels, 2012, 68-69).


A marca atual é a queda da era do garantismo do trabalho substituído pela modernização das relações trabalhistas, como a ocorreu em 2017 e já aprofundada pela MP 905/2019 no Brasil, que ampliou a possibilidade de jornadas de 12 horas, além do primado do negociado sobre o legislado e a criação da Carteira de Trabalho Verde e Amarelo, com redução drástica de direitos aos jovens trabalhadores. Eric Hobsbawm já havia constatado que a crise atual do capitalismo possui um diferencial que “... o mercado” “não tem nenhuma resposta para o principal problema com que se defronta o século XXI: o fato de que o crescimento econômico ilimitado e cada vez mais tecnológico, em busca de lucros insustentáveis produz riqueza global, mas às custas de um fator de produção cada vez mais dispensável, o trabalho humano, e, talvez convenha acrescentar, os recursos naturais do planeta.” (HOBSBAWN, 2011, 375). Esta análise confirma que ao contrário do que se pode pensar a crise do mundo do trabalho não está desconectada da crise ambiental.


Michael Löwy, ao fazer um resgate dos pensadores que atualizaram as utopias, destaca que Hobsbawm identifica nas comunidades camponesas e rurais a força que pode criar a erupção contrária ao modelo capitalista, vez que este representa um paradigma de agressão brutal do seu modo de vida, permitindo identificar espécie de ludismo politico (Löwy, 2016, 117).


De fato, quando a ONU por meio da Resolução 74/209, de 19 de dezembro de 2019, adotou o dia 29 de setembro como o dia Internacional de alerta contra o desperdício e perda de alimentos, destaca que a Década das Nações Unidas da Agricultura Familiar (2019–2028), restou afirmado o importante papel dos produtores familiares de mais de 80 por cento da Produção Mundial de Alimentos em termos de valor, registrando ainda que , de acordo com uma estimativa inicial em 2011, um terço da comida produzida anualmente no mundo para consumo humano, equivalente a soma de 1.3 bilhões de toneladas, foi perdida ou desperdiçada, enquanto cerca de 821 milhões de pessoas sofrem de desnutrição crônica e aproximadamente 151 milhões de crianças abaixo de cinco anos de idade tinha crescimento retardado em 2018.


Esta análise teórica associada aos dados sobre a importância agricultura familiar para a produção de alimentos no mundo e seu desperdício no processo de circulação do mercado, pode iluminar o possível papel de vanguarda dos agricultores e comunidades tradicionais como fundamentais para o bem estar humano, embora não recebam, no mais das vezes, a devida atenção e tem seus interesses preteridos frente ao agronegócio, voltado à produção de commodities e não a produção de alimentos para o consumo humano.

Relevante a força simbólica e prática do Encontro dos Povos Mebengokrê, ocorrido na Aldeia Piaraçu/TI Capoto Jarina, São José do Xingu (MT), em que 45 povos indígenas, com cerca de 600 lideranças indígenas, firmaram a construção do documento “Manifesto do Piaraçu das Lideranças indígenas e caciques do Brasil, que inclui a formação de uma nova aliança entre os povos das florestas, incluindo a caatinga, cerrado, pantanal, mata atlântica e floresta amazônica, defendendo a proteção dos seus territórios, não apenas como um patrimônio seu, não só como uma luta dos indígenas, mas uma luta pela vida do planeta."


A desorganização do mundo do trabalho, a perda do papel de vanguarda do proletariado e a crise ambiental sem precedentes, reforçada pela não realização dos compromissos internacionais para as agendas ambientais, tornam sem sentido discutir se o socialismo real foi melhor ou pior que o capitalismo. A centralidade do capitalismo real não deixa dúvidas que nele não há contraponto sequer ideal a sua natureza de ser, pois o lucro que o move é incompatível na sua volumetria assimétrica com a limitação dos recursos naturais.


Se alguma utopia é possível é fora do argentarismo. E certamente tem as famílias da agricultura familiar e da floresta como primordiais. No século XXI reina a distopia do Capital. Talvez o Manifesto Piaraçu seja a utopia ali na floresta e aliança com o campo... a espera de uma adesão planetária dos que não renunciam a sua humanidade.


 

IBRAIM ROCHA - Procurador do Estado e Doutor em Direito.


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