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UMA DIFÍCIL E SOFRIDA TRAVESSIA

-MARIE MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA-


Bérgamo em Itália. Imagem de Ilustração. © AFP/File


O desafio de escolher entre quem pode morrer e quem deve viver... É uma escolha soberana sobre a vida de milhares e milhões de pessoas. Cabe esta escolha a uma determinada pessoa, por mais alta que seja sua posição no quadro político do Estado? E essa opinião particular pode prevalecer sobre as constatações científicas dos infectologistas? A população deve aceitar esse risco coletivo imposto por autoridade constituída sob a vigência da Constituição Federal, a mesma que traz convergência de medidas que limitam as decisões soberanas e princípios imperativos?


O direito à saúde é um dos direitos fundamentais reconhecidos expressamente na Constituição Federal do Brasil. Também ele é reconhecido como tal pelos tratados internacionais de direitos humanos, a que o País aderiu e, por consequência, internalizou no ordenamento jurídico interno.


Ora, para que servem os direitos humanos? “Para proteger bandidos”, dizem alguns. Respondo-lhes, o direito à vida e à saúde são também direitos humanos, e a saúde pública, da mesma forma.


Esses direitos humanos, significando o “direito de todos os seres humanos”, são pouco valorizados por aqueles que desconhecem a sua importância. E, infelizmente, mal interpretados por alguns meios de comunicação, avessos a informar melhor sobre eles para a população em geral. Os valores da vida, da saúde e da saúde pública batem em nossas portas, mostrando a sua face no quadro de sobrevivência individual, embora na roupagem de sobrevivência coletiva, na pandemia do coronavírus, COVID-19.


Infelizmente, o novo coronavírus está presente em 196 países e territórios, já matou quase 20 mil pessoas em todo o mundo e já contaminou mais de 400 mil. A doença está causando colapso nos sistemas de saúde pública, em especial nos países mais afetados. Merecem destaque, de um lado, a Alemanha, e, por outro, a Itália, pela decisão tomada por seus governos, em sentido bem diferenciado e com consequências visíveis para a saúde pública.


A Alemanha, embora o quinto entre os dez países mais afetados, apresenta a menor taxa de mortalidade da doença. Isto é o resultado de um conjunto de iniciativas colocadas em prática, diante da percepção da gravidade do problema, como a iniciativa, logo no início, de distanciamento social, realização de testes no maior número possível de pessoas, auxiliando na detecção dos pacientes assintomáticos, que seriam responsáveis por dois terços das infecções da doença e também impediu que a doença chegasse à população idosa. O sistema de saúde funcionou de forma mais regular e eficiente e se priorizou a questão da saúde pública de forma mais abrangente.


Foi diferente na Itália, onde, no meio da escalada de casos, o governo decidiu confinar as onze cidades no norte do país que haviam registrado os primeiros contágios por transmissão direta, mas algumas autoridades auxiliaram na divulgação, pela web, de vídeos em sentido contrário. O próprio primeiro ministro afirmou que o país não poderia parar e a vida teria que seguir normalmente. A população pagou um preço alto por ter deixado de lado as medidas de isolamento para suavizar o impacto econômico.


A partir de 3 de março, o balanço de vítimas fatais começou a crescer exponencialmente, com 79 mortes, até chegar em 7.503 vítimas anunciadas recentemente. O país se tornou o recordista de óbitos no mundo. A tentativa de reduzir a curva galopante da disseminação é extremamente difícil e muito mais prejudicial agora para a economia, sem contar que as vidas perdidas não podem ser computadas em termos rasos de economia. A primeira vítima do COVID-19 foi propriamente o sistema de saúde pública, que não conseguiu comportar o atendimento dos casos graves, chegando ao ponto de casos em que houve a necessidade de escolha de quem poderia utilizar os aparelhos de respiração artificial, insuficientes em número, em detrimento das vítimas com idade superior a 80 anos. Uma tragédia humana numa época de aparente paz!!


Missa realizada pelo Papa Francisco, na sexta-feira (27.03), na Praça São Pedro vazia. Foto: Guglielmo Mangiapane/Reuters.


Esse vírus chegou ao território brasileiro, inicialmente, por pessoas contaminadas no exterior que vieram ao Brasil e, atualmente, está se espalhando na forma de contágio sustentado, por disseminação entre pessoas no Brasil que nem tiveram contato direto com pessoas vindas do exterior. É a fase crítica, pois inexiste controle sobre sua disseminação direta!!


O Brasil completou trinta dias desde a primeira notícia de caso de infecção. A tendência no exterior mostra que o ritmo de contágio ocorre após esse período do primeiro mês. Portanto, ainda não passamos pela fase aguda.


As regras sanitárias que foram estabelecidas em outros países para tentar evitar a propagação deste vírus, e suas consequências, trazem muitos ensinamentos para as autoridades brasileiras na área de saúde pública. Em decorrência daquelas medidas nesses países, entre erros e acertos, muitas vidas se perderam e outras foram poupadas.


O Brasil encontra-se agora num momento decisivo de escolha, conhecendo as experiências vividas com as decisões dos países da Europa e da Ásia. A decisão do senhor Ministro da Saúde, baseado em dados científicos, de determinar o isolamento horizontal, à exceção de atividades essenciais, corre sério risco de ser alterada, pois o chefe do governo está pretendendo liberar deste isolamento as atividades em geral, para poupar a economia, fazendo até campanha nesse sentido e que encontra eco em determinados grupos econômicos.


No entanto, o próprio sistema financeiro no Brasil está entendendo a gravidade da situação, pois foi criada uma espécie de “moratória” para as dívidas em geral por um período de 60 dias, sem cobrança de juros. Inclusive, as possibilidades de empréstimos a juros baixos para determinados setores da economia. Percebe-se que existe uma crença de que nesse período haverá uma normalização da economia no Brasil, desde que tomadas as cautelas sanitárias essenciais.


Também no âmbito do Legislativo, existem duas propostas para uma reduzida taxação das grandes fortunas, indicando a possibilidade de ingresso desse imposto nos cofres públicos para ser injetado no combate aos efeitos do novo coronavírus. Também merece atenção o aumento proposto de ajuda aos autônomos de baixa renda de 200 para 600 reais ao mês para o período de três meses.


Felizmente, muitas pessoas já entenderam que a ação individual é responsável pelas consequências na saúde de todas as pessoas. Esse vírus não faz escolhas, espalha-se por todos os lugares onde faltam defesas, como o uso de produtos de desinfecção, álcool gel, higiene com a lavagem das mãos, proximidade e contato entre pessoas, enfim, todas as formas que as autoridades sanitárias no Brasil e a própria imprensa estão claramente difundindo.


O vírus também não faz escolhas entre pobres e ricos. O Brasil é um país de enormes desigualdades econômicas e sociais e as defesas contra esse vírus são diferentes conforme as condições socioeconômicas de cada pessoa. A disseminação violenta entre determinados grupos pode aumentar exponencialmente os casos agudos e inviabilizar o esforço do sistema de saúde que está despreparado para atender a possível demanda. Seriam muitas mortes anunciadas!!


As famílias e as pessoas que residem em casas habitadas por muitas pessoas em espaços reduzidos e compartilhados, que têm suas casas em vielas e ruas estreitas de trânsito intenso de pessoas, como comunidades (favelas), que sofrem de suspensão temporária de fornecimento de água, que dependem mais do transporte público, que têm menor condição de acesso a atendimento médico para tratar doenças preexistentes, estão mais sujeitas ao contágio por esse vírus e aos seus efeitos.


A escolha da política sanitária pelo governo deve atender unicamente a interesses de saúde pública. A economia se recupera, a vida humana perdida não tem volta, simples assim. Não se deve avaliar qualquer vida humana em termos econômicos. O Brasil ocupa o nono lugar entre as economias mundiais (2018) e tem capacidade financeira para injetar dinheiro para enfrentar as dificuldades econômicas que estão surgindo por causa desta pandemia, o que também aconteceu com os demais países que sofrem seus efeitos.


Qualquer medida que contrarie essa escolha ética e constitucional com prioridade pela vida poderá trazer consequências irreversíveis e imperdoáveis numa população de 209 milhões de habitantes, com população elevada de idosos e, comparativamente, em número menor de crianças. Destaque-se que, em muitas famílias, a renda dos idosos, que vivem de aposentadoria, auxilia no sustento e a morte destes pode afetar economicamente esses seus “dependentes informais”.


Estamos todos no mesmo barco e teremos que passar por esta travessia de forma democrática, humana, inteligente e organizada, atendendo à orientação dos infectologistas e contando com o trabalho dos funcionários da área de saúde pública, do Sistema Único de Saúde, o nosso valoroso SUS, que abrange tanto o atendimento por entidades públicas quanto por entidades particulares conveniadas, sistema esse que tem como diretriz a solidariedade social.


E, principalmente, dependemos da colaboração individual de todos para tentar minimizar a velocidade de contágio desse vírus e permitir, assim, que os hospitais se reorganizem para atender, da melhor forma possível, os casos necessários de internação e de utilização dos equipamentos de respiração artificial. Temos ciência de que o contágio do vírus é inevitável, mas medidas eficientes de redução de sua velocidade exponencial são essenciais.


Grande parte da população do Brasil tem consciência de sua responsabilidade social e está enfrentando este grande desafio com o sentimento de solidariedade característico de situações extremas, de uma difícil e sofrida travessia. O momento é de união em favor da vida de todos!!

 

MARIE MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA é membro do IBAP, Advogada; Mestre em Direito Constitucional (PUC), Mestre em Ciências (Patologia Social) FESPSP e membro do Conselho Fiscal do IBAP.


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