- Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima -
O então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, atualiza dados em coletiva de imprensa sobre a infecção pelo novo coronavírus no Brasil - Foto: Marcello Casal / Agência Brasil.
Atualmente o mundo enfrenta um enorme desafio de saúde pública, que levanta novos questionamentos sobre o respeito imediato aos valores humanitários em face dos efeitos na economia. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional devido à infecção pelo COVID-19, num contexto em que se mantinha ainda, em grande parte, restrita à China. Em 11 de março de 2020, a OMS decretou uma situação de pandemia, pelo fato de que nas duas semanas, desde 26 de fevereiro, aumentara treze vezes o número de casos fora da China e triplicara o número de países afetados, com registro de 118 mil casos, distribuídos em 114 países, com quase 4.300 vítimas fatais. O desafio colocado aos países, segundo o Diretor-Geral da OMS, seria realizar um trabalho de controle do alastramento da pandemia, para permitir ao sistema de saúde local comportar o atendimento a suas vítimas.
Na sequência, no Brasil, o Ministério da Saúde baixou a Portaria n. 188, de 3 de fevereiro de 2020, em que declarou o país em uma “Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional” (ESPIN), por causa da Infecção Humana pelo novo corona vírus (2019-nCoV). A gestão coordenada, em âmbito nacional, da resposta à emergência, o Centro de Operações de Emergências (COE-nCoV), ficou sob a direção e a responsabilidade da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS). (DOU 4/2/2020)
A declaração de emergência sanitária já estava disciplinada no Decreto n. 7.616, de 17 de novembro de 2011, e, no caso da Covid-19, teve como fundamentos: apresentar risco de disseminação nacional, ser produzida por agentes infecciosos inesperados, apresentar gravidade elevada e extrapolar a capacidade de resposta do SUS em âmbito nacional. O decreto apresenta parâmetros e procedimentos específicos e criou a Força Nacional do SUS. Nesse mesmo ano, a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde elaborou o Plano Nacional de Resposta às Emergências de Saúde Pública, para situações de emergência no plano federal e de subsídio para a elaboração de planos estaduais e municipais. Prevê a necessidade de gastos especiais, urgentes, na área da saúde, para controlar e reduzir a extensão da disseminação da emergência.
Essa declaração exige, em linhas gerais, a criação de uma ampla política pública emergencial que determina as medidas que deverão ser tomadas, com base técnica e científica, para minimizar os efeitos da infecção pelo Covid-19 na população, envolvendo tanto a questão de pessoal da saúde, equipes médicas e de atendimento como a questão de recursos materiais, hospitais, equipamentos, enfim, gastos com verbas excepcionais, no contexto unicamente da saúde pública, e prevê até dispensa de licitações para as aquisições e os serviços necessários.
No dia da declaração de emergência internacional pela OMS, em 30 de janeiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro promulgou, pelo Decreto n. 10.212, o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional (RIS) de 2005, passando a integrar o ordenamento jurídico interno. Sem pretender aprofundar na discussão sobre terem, ou não, essas normas do RSI força vinculante, deve-se reconhecer, na prática, serem elas portadoras de peso técnico e científico e terem relevância jurídica como diretriz nas decisões administrativas e no controle judicial dos tribunais brasileiros. (Rafael Soares Souza, Revista Consultor Jurídico, 14/04/2020)
A própria Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2002 (art. 2º, par. único), -- que dispõe sobre as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo Corona vírus, -- adotou expressamente as definições estabelecidas no artigo 1º do Regulamento Sanitário Internacional, que consta como anexo do decreto de sua promulgação. Na redação original do projeto de lei apresentado pelo Presidente da República perante o Congresso Nacional, em 3 de fevereiro de 2020, está enunciado que as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do corona vírus “somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”. (art. 3°, § 1º).
Nos termos da lei, o Ministério da Saúde assumiu a direção dos trabalhos de prevenção, rastreamento e controle da possível chegada do vírus ao Brasil, adotando o conceito de “dados e ciência aberta”, para divulgar as informações e esclarecer sobre as providências, aprimorando os dados, pois não havia instrumentos específicos para o Covid-19. Para divulgar os dados, as orientações e a análise da situação, o Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública – Doença pelo Coronavírus 2019 lançou o Boletim COE Covid-19, com dados semanais.
Na Portaria MS n. 188, de 3 de fevereiro, adotam-se duas formas de afastamento de pessoas: isolamento - separação de pessoas doentes ou contaminadas - e quarentena - restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes. Com a evolução dos casos de infecção pela Covid-19 no Brasil, a recomendação do Ministério da Saúde para os Secretários de Saúde estaduais e municipais foi a adoção de Distanciamento Social Ampliado (DSA), que não se restringe a grupos específicos, recomendando que todos os setores da sociedade permaneçam na residência durante a vigência da decretação da medida pelos gestores locais, e restringir ao máximo o contato entre pessoas, à exceção da manutenção dos serviços essenciais, onde o rigor com a higiene é essencial. O objetivo é reduzir a velocidade de propagação, visando a ganhar tempo para equipar os serviços de saúde com os condicionantes mínimos de funcionamento: leitos, respiradores, EPI, testes laboratoriais e recursos humanos.
Em 28 de fevereiro, o Ministério da Saúde lançou uma campanha publicitária de prevenção ao corona vírus, veiculada na mídia, orientando a população a prevenir a doença pela adoção de hábitos de higiene, como lavar as mãos, fazer uso do álcool em gel a 70% e não compartilhar objetos de uso pessoal. Em 26 de fevereiro, foi registrado o primeiro caso de infecção por Covid-19 em pessoa que voltou de viagem da Itália (BE COE n. 4, de 4/3/2020).
Em 14 de março, o Ministério da Saúde recomendou aos Secretários de Saúde dos Estados e dos municípios adotar medidas oportunas que favoreçam a prevenção e preservem a capacidade do serviço de saúde. Evitar autorizar eventos com aglomeração - governamentais, esportivos, artísticos, culturais, políticos, científicos, comerciais e religiosos e outros onde houvesse concentração próxima de pessoas; reduzir o deslocamento laboral, com sistema de home office, incentivar reuniões virtuais, entre outras.
Até esse momento, parecia haver harmonia entre a equipe do Ministério da Saúde e os governadores estaduais e também prefeitos municipais com relação à forma de enfrentar o novo coronavírus, evitando a disseminação rápida, considerando que inexiste ainda vacina ou qualquer medicamento capaz de combater a pandemia. Tudo isto em harmonia com a filosofia de criação do SUS – participação tripartite entre o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONASS) e com o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS).
Alguns Estados começaram a adotar medidas de distanciamento social. Os primeiros foram os Estados de Goiás e do Rio de Janeiro, seguidos por Santa Catarina, Distrito Federal e São Paulo, respectivamente, pelos Decretos nº 9.633, 13 de março de 2020; nº 46.970, de 13 de março de 2020; nº 507, de 16 de março de 2020; n° 40.539, de 19 de março de 2020; e nº 64.881, de 22 de março de 2020.
Imagem: Boletim Epidemiológico 05 COE COVID-19 14/3/2020 Ministério da Saúde.
Em 20 de março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro editou a MP 926, de 20 de março de 2020, que introduziu alterações significativas na Lei n. 13.979, de 6/2/2020, concentrando apenas no Executivo federal a escolha do que seriam atividades essenciais e que permaneceriam em atividade.
O Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6341) no Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar essa Medida Provisória, que dispõe sobre medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus 2020 e, por extensão, o Decreto 10.282/2020. Sustentou que a redistribuição de poderes de polícia sanitária introduzida pela MP na Lei Federal 13.979/2020 interferiu no regime de cooperação entre os entes federativos, pois confiou à Presidência da República as prerrogativas de isolamento, quarentena, interdição de locomoção, de serviços públicos e atividades essenciais e de circulação. Essa centralização de competência iria esvaziar a responsabilidade constitucional de estados e municípios para cuidar da saúde, dirigir o Sistema Único de Saúde e executar ações de vigilância sanitária e epidemiológica no seu âmbito territorial de competência. O exercício do poder de polícia sanitária por estados, Distrito Federal e municípios, em especial em ações de isolamento, quarentena e interdição de locomoção, circulação, atividades e serviços, não pode ser confundido com uma tentativa de usurpação de competências da União. Segundo os argumentos apresentados, é inconstitucional interpretar que a prerrogativa da União afasta a autonomia dos outros entes federativos para imprimir as mesmas ações, de acordo com as realidades regionais e locais. Em 24 de março, o relator ministro Marco Aurélio deferiu, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente, medida a ser submetida ao crivo do Plenário presencial.
Em decisão, no dia 15 de abril, o Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais. Em outras palavras, ficou ressalvada a validade das providências determinadas por Estados e municípios em vigilância sanitária e de saúde, que forem mais restritivas que as medidas do governo federal.
Em 3/4/2020, o Centro de Operações de Emergências do Ministério considerou que a pandemia é dividida em quatro fases epidêmicas: transmissão localizada, aceleração descontrolada, desaceleração e controle. Nessa data, o país se encontrava na fase de transmissão localizada (comunitária), com alguns locais passando para a fase de aceleração descontrolada e reconheceu que as estratégias de distanciamento social aplicadas pelos Estados e o Distrito Federal estão de acordo com as recomendações de órgãos internacionais, como a OMS, bem como do próprio Ministério da Saúde. Registra a preocupação com a falta de EPIs para profissionais de saúde, cuja compra e distribuição atrasou por questões logísticas. Recomenda para as unidades da Federação que implementaram medidas de distanciamento social ampliado que mantenham essas medidas até que o suprimento de equipamentos (leitos, EPI, respiradores e testes laboratoriais) e equipes de saúde (médicos, enfermeiros, demais profissionais de saúde e outros) estejam disponíveis em quantitativo suficiente, de forma a promover, com segurança, a transição para a estratégia de distanciamento social seletivo. Ademais, prossegue o MS apoiando os estudos clínicos para avaliação de drogas como a cloroquina, antirretrovirais e outras classes de medicamentos no tratamento de casos de COVID-19.
Infelizmente, o trabalho realizado pelo Ministério da Saúde, sob a direção de Luiz Henrique Mandetta e sua equipe, encontrou grandes obstáculos, dentro do próprio Poder Executivo. As medidas de prevenção e de esclarecimento da população sobre a necessidade de respeito às normas de isolamento ou distanciamento social, orientadas pela ciência e pela experiência de outros países, têm sido expressamente desqualificadas e, muitas vezes, ridicularizadas em manifestações públicas pelo presidente da República, contrariando o conteúdo dos documentos legais que levam sua assinatura. Entre o papel e o verbo, prefere fazer valer este último – o que repercute na população, que acaba se convencendo, por falta de maiores conhecimentos, de que a pandemia não necessita de atenção especial e que a vida pode seguir normalmente. O discurso repetido de autoridade, no caso, de presidente da República, tem força formadora de opinião e, portanto, em questão de saúde pública, como nesta pandemia, pode levar a consequências graves, em termos de doenças, sequelas e perdas de vida. As declarações públicas verbais e nas redes sociais, quando desconformes com a lei e a ciência, constituem também atos administrativos que infringem a lei e, pois, passíveis de responsabilidade de caráter penal e administrativo.
Além de pobres, as políticas adotadas em forma de auxílio emergencial ou outras formas de incentivo para a população em geral e, em especial, da mais necessitada, são ineficientes no valor e na rapidez de pagamento, tornando o distanciamento social uma angústia maior. Os países desenvolvidos e democráticos agiram com mais presteza e, desta forma, facilitaram a adesão à quarentena.
O cenário está desolador com a mudança de Ministro da Saúde em plena pandemia, ataques constantes aos Poderes com a personificação de inimigos imaginários, enquanto aguardamos novos dados de vítimas da pandemia no meio da negação repetida de sua existência por quem deveria assumir o papel de defesa da população no país que se ufana em ser a nona economia no mundo...
Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é membro do IBAP, Advogada; Mestre em Direito Constitucional (PUC), Mestre em Ciências (Patologia Social) FESPSP e membro do Conselho Fiscal do IBAP.
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