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Nós e as cidades: hora de refazer vínculos

-ANA STELA CÂMARA-


Desde que este estado atípico de coisas começou, a experiência do isolamento social tem proporcionado um sem-número de inusitadas reflexões. Uma delas encontrou-me desprevenida, quando decidi pôr meu bebê a tiracolo para um pequeno passeio a pé pela vizinhança: a primeira ida ao Parque do Cocó[1], após sua reabertura.



Parque do Cocó - acervo pessoal da autora

Ao chegar, senti uma vertigem, tamanho o impacto de fitar o intenso azul do céu, sem qualquer mediação da telas de proteção das janelas do apartamento. Alguns cachorros brincavam de apostar corrida, enquanto seus donos trocavam, à distância, impressões sobre cuidados diários e peripécias de seus mascotes.

Outras pessoas usufruíam do espaço, cada uma a seu modo: conversavam, fotografavam, exercitavam-se. Umas poucas crianças faziam piruetas no verde tapete gramado, enquanto seus pais tocavam violão e cantavam músicas populares. Das inúmeras árvores no local, me chamou a atenção uma frondosa castanhola, cujas folhas caíam lenta e compassadamente, como num gracioso balé.

Aquela estética bucólica e frugal me trouxe um revigorante bem estar, acompanhado de uma alvissareira sensação de liberdade. Nem de longe parecíamos estar numa metrópole desigual, de estruturas rígidas, lógica produtivista, mecanicista e fundada em [suposta] racionalidade excessiva – o "reino dos horários, dos relógios, das normas e dos regulamentos", diria Milton Santos (2014).


As circunstâncias do confinamento me conduziam a olhar com estranheza, quase como uma forasteira, para o que outrora seria trivial. Como aponta Santos (2014, p. 306), "o lugar novo [...] obriga a um novo aprendizado e uma nova formulação. [...] o espaço [...] é o teatro dessa novação por ser, ao mesmo tempo, futuro imediato e passado imediato, um presente ao mesmo tempo concluído e inconcluso, num processo quase sempre renovado". SANTOS, 2014, p. 330).


Reavivou-se, ali, portanto, o senso de oportunidade para uma autocrítica da vida na cidade, para o exercício de uma contrarracionalidade hegemônica acerca de como é, talvez mais do que nunca, necessário encontrar caminhos para nutrir o vínculo afetivo e de pertencimento de seus habitantes, indistintamente, com os espaços públicos ao ar livre, como um fator primordial de promoção de saúde física e mental de toda a coletividade.


Diante das incertezas quanto ao futuro pós[?] pandemia, isso pareceu uma demanda ainda mais urgente. Vieram à tona, como bastante oportunas para o momento, as ideias de Tim Jackson (2009), para quem a noção de prosperidade de um povo não se baseia na noção de crescimento econômico ilimitado, englobando, em verdade, um conjunto de fatores, entre os quais os ecológicos, psicológicos, filosóficos e espiritualistas, que, juntos, dão profundidade à existência e trazem uma maior sensação de completude ao ser humano, do que quando reduzido ao sujeito [objetificado] que produz e consome.

As evidências disto estavam ali, diante dos pequenos fragmentos de narrativas coincidentes da vida daqueles desconhecidos, cada um a seu modo, juntos, compondo um cenário harmônico de coexistência. Será que estávamos realmente na mesma cidade de instantes antes?


Observava atentamente aquele conjuntos de acontecimentos, quando uma brisa insubmissa me assanhou os cabelos. Olhei para o bebê, que respirava suavemente, adormecido no meu colo. Era hora de irmos. Respirei fundo, diante da velha castanhola, olhei para o alto de sua copa, quando encontrei o céu outra vez. Além de tudo, ali estava a lua crescente, em sua característica forma, parecendo que sorria e lia os meus pensamentos. Sorri-lhe de volta, despedindo-me, e me fui a andar, certa, apenas, de que em breve ali iria retornar.

REFERÊNCIAS

JACSON, Tim. Prosperity without growth: economics for a finite planet. London: Eartscan, 2009.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2014.

[1] Aos que não conhecem Fortaleza, explico. Trata-se do quarto maior Parque natural urbano da América Latina, um enclave de pouco mais de mil e quinhentos hectares de biodiversidade, trilhas, equipamentos de ecoturismo e de eventos culturais. Um cenário convidativo ao sossego, à contemplação e ao lazer.

 

ANA STELA CÂMARA - Doutora em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professora do Centro Universitário Christus. Membro da Associação Brasileira de Professores de Direito Ambiental – APRODAB



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