- Guilherme Purvin -
A avalanche de escândalos, gags, atos falhos nos últimos dias nos revela apenas uma certeza: o Jornalismo, com J maiúscula, se ainda está vivo no Brasil, sobrevive na UTI e respira por aparelhos. Nos últimos dias, dois fatos foram noticiados com maior destaque: a condenação de Deltan Dalagnol pelo STJ e uma bombástica declaração do (ex-)ministro da Educação Milton Ribeiro envolvendo diretamente seu superior hierárquico.
A condenação pelo powerpoint
Começamos com uma entrevista que a CNN fez com o ex-Procurador da República Deltan Dalagnol. A entrevistadora era Monalisa Perrone e as perguntas giravam em torno da condenação civil do militante antipetista paranaense pelo uso do grotesco powerpoint, no qual ele pretendia provar que todos os crimes cometidos no âmbito da competência da "lava-jato" haviam sido idealizados e comandados pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Chama a atenção o fato de que todas as atenções se voltaram ao pito que a entrevistadora deu ao jovem político por ele haver atropelado sua fala. Um pito, sem dúvida, muito bem dado, já que não podemos continuar admitindo a prática de manterrupting.
No que diz respeito à auto-defesa de Dalagnol, contudo, não se leu ou ouviu uma só palavra nos meios de comunicação: o rapaz se irresignava, não exatamente com o fato de aquele tipo de acusação midiática ter sido considerado ilegal, mas porque teria sido ilegal somente no caso do Lula. Disse ele na entrevista:
"A mensagem [ que a condenação do STJ ] está passando é (...) de retaliação do sistema. É uma mensagem de 'Promotores, Procuradores, Juízes [ SIC ], quando vocês forem fazer uma acusação contra poderosos, não dêem um tratamento igual ao que vocês dão nos outros casos. Não façam entrevistas coletivas, você está correndo risco. Evitem trabalhar em casos de pessoas poderosas porque você vai ser condenado, você vai ter que pagar uma indenização".
"Tratamento igual ao que vocês dão nos outros casos"... Em outras palavras, além de cometer a heresia de afirmar que compete a um juiz acusar, o ex-integrante do Ministério Público Federal admitiu publicamente que parte dos membros de sua instituição tem o costume de utilizar em suas acusações um expediente que o Superior Tribunal de Justiça considera ilegal. E esta confissão, ao que parece, não teve o condão de comover ninguém! Em lugar de aprender que entrevistas coletivas e estardalhaço midiático ofendem a honra de pessoas (ricos ou pobres, poderosos ou vulneráveis), que são presumidamente inocentes até que seja definitivamente provado o contrário, o político antipetista interpreta a decisão pelo avesso: continuem extrapolando os limites constitucionais do exercício ministerial, acautelando-se apenas no caso de acusações de "poderosos".
Conheço dezenas de Promotores e Procuradores de Justiça e da República - todos inteiramente cônscios dos limites éticos e constitucionais fixados para o exercício da função persecutória. Já tarda o momento de se cobrar de alguns membros do Ministério Público a sua imediata adequação aos ditames da Constituição Federal - notadamente ao respeito ao princípio da dignidade humana.
O PT cometeu uma série de horrores ao longo de 14 anos, sendo paradigmático o caso da Usina de Belomonte, mas essa violência contra o povo de Altamira e o Rio Xingu em nenhum momento foi computada no "conjunto da obra" que resultou no golpe contra Dilma Roussef.
A absolvição de Lula, no caso da Lava-Jato, cabe ressaltar, decorreu de uma sucessão de erros técnicos, de procedimentos equivocados, de acusações ineptas, de desleixo na produção de provas robustas e de desconsideração para com regras de lógica formal. As acusações relativas ao hilário "triplex" do Guarujá ou ao sítio do pedalinho eram pífias, selecionadas para alimentar o imaginário de uma classe média tacanha que sonha com essas pequenas alegrias de final de semana.
Houvesse, contudo, maior atenção ao que estabelecem o Código de Processo Penal, ao Código Civil Brasileiro (que disciplina o direito de propriedade) e à Constituição Federal e, sobretudo, houvesse preocupação com a investigação, que não se confunde com defesa de uma tese preconcebida, o quadro político e institucional no país seria outro, quiçá muito mais salutar. Ou talvez não, já que não se tem notícia de país onde a corrupção tenha sido eliminada graças à atuação de pessoal remunerado pelos próprios cofres públicos, inteligente o bastante para criar suas próprias interpretações e decisões sobre seu teto salarial e sobre penduricalhos. Ética, já demonstrava Jeremy Bentham, circunscreve o Direito, e não o contrário. Mas Filosofia do Direito não é Direito Positivo.
De tudo o que foi dito por Deltan, o que realmente merece crédito é que, sem dúvida, os nossos tribunais superiores, na voga do antipetismo, alimentados pela manipulação midiática da opinião pública, deram aval para todas as atecnias e inépcias processuais, em nome da popularidade. E, agora, talvez assustados com a situação monstruosa que contribuíram para criar, buscam resgatar um mínimo de respeito para com o Direito Constitucional. A começar pela observância da regra basilar segundo a qual ninguém pode ser considerado culpado senão após condenação judicial transitada em julgado.
Claro, foi engraçado ver a cara de Deltan ao receber o pito de Monalisa, mas o que entristece é o fato de que esse incidente, a exemplo da reação de Will Smith à piada idiota do comediante no Oscar, acabou por encobrir questões muito mais relevantes para a construção de uma sociedade democrática, alicerçada nos princípios dos Direitos Humanos.
Colocando a cara no fogo
O outro escândalo, como não podia deixar de ser, envolve a figura do Presidente da República. Trata-se, simplesmente, de uma declaração do (então) Ministro Milton Ribeiro, de que, atendendo a pedido do presidente, repassaria verbas do ministério para os pastores Gilmar Santos (Presidente da Convenção Nacional de Igrejas e Ministros das Assembleias de Deus no Brasil) e Arilton Moura (também ligado à Assembleia de Deus). A despeito de não terem cargos no governo federal, nos últimos anos os dois "religiosos" participaram de várias reuniões com autoridades e tiveram encontros com Bolsonaro.
O lance de comicidade, no caso, foi a declaração de Bolsonaro, de que colocaria "a cara no fogo" pelo seu (ex-)Ministro. O melhor dos mundos: nem colocar a mão no fogo, nem dar a cara a tapa, muito embora saibamos que o supremo mandatário da nação não dá nem mesmo a mão a tapa por ninguém, a não ser por seus filhos.
As especulações da imprensa voltaram-se então à pressão da bancada evangélica para que fosse substituído o ministro linguarudo. Com relação aos destinos da Política Educacional, porém, o silêncio é atordoante! Há quase quatro anos temos acompanhado uma sucessão de horrores nesse setor, a começar pelas nada saudosas figuras de Vélez Rodriguez e de Abrahão Weintraub. Em meados do ano passado, a Educação brasileira estava em último lugar em ranking de competitividade e a tendência era de queda ainda mais acentuada, conforme notícia veiculada pela CNN.
Mesmo se nos circunscrevêssemos ao debate sobre as negociações políticas envolvendo Bolsonaro e evangélicos, choca o fato de que tão pouca importância se dê ao fato de que o (ex-)Ministro Milton Ribeiro teria nominado expressamente quem ele estaria obedecendo ao privilegiar dos representantes da Assembleia de Deus: Jair Bolsonaro. E este dado parece ter pouca ou nenhuma relevância para a imprensa, que prefere assanhar-se com a discussão de quem preencherá no Ministério da Educação o buraco de 9 meses que restam para o fim deste mandato presidencial.
Na verdade, todos já sabemos que pouco importa quem venha a ocupar tal cargo. Já temos um astronauta que, ao que parece, colocou seu ministério orbitando bem longe do Planeta Terra, para que ninguém perceba a inoperância de sua pasta. Certamente será alguém menos histriônico do que Vélez Rodriguez ou Weintraub. Enquanto isso, o número de analfabetos no país continuará crescendo, sob o beneplácito da grande imprensa.
Invocando a ruptura democrática
Estamos às vésperas do 58º aniversário do "movimento de 1964", como propõe o Ministro do STF Dias Toffoli. É de se esperar que novos pronunciamentos antidemocráticos bombásticos sejam lançados. Afinal,, tem sido assim ao longo destes intermináveis 39 meses de caos, ameaças e afronta ao princípio do Estado Laico. O objetivo será, obviamente, de se manter o ambiente de instabilidade institucional, indispensável para a manutenção do homem que coloca a cara no fogo e sai ileso - diriam os místicos, talvez porque o fogo é o seu elemento natural. Um ministro do TSE já decidiu pelo fim da liberdade de expressão política em eventos públicos, jogando no lixo a Constituição Federal. Acompanhemos qual será a reação de nosso tíbio jornalismozinho brasileiro diante dos novos escândalos que se prenunciam.
Guilherme Purvin, graduado em Direito e Letras, é Doutor pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado/SP aposentado, é escritor e ambientalista. Atualmente está na presidência do IBAP. É editor-chefe da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares.
O texto, excelente, revela como os nossos meios de comunicação naturalizam um obscurantista como Deltan, representando uma parcela do Ministério Público que ainda não chegou nem mesmo a Beccaria, uma parcela que considera função do juiz assumir a inimizade contra o réu. Uma liberdade iluminista, como a de imprensa, utilizada para negar um dos maiores legados do iluminismo, que é a imparcialidade do julgador.
Essa mídia que celebra os elementos laterais dos fatos, mas não aborda o que de fato afeta a vida me lembrou o filme “Não olhe pra cima”. Nele também se retrata essa percepção de uma mídia alienante e alienada que, ao cabo, facilita e pavimenta o caminho da mediocridade e da destruição da sociedade. Excelente!
Inovador o estilo jornalístico de análise crítica ao jornalismo que desconsidera a ilegalidade do comportamento dos ocupantes de cargos políticos e representantes de instituições, dando destaque para vaidades e circunstâncias de menor importância. Parabéns, Guilherme.
Exortação à leitura/oitiva do texto, inserção no contexto e compreensão do subtexto. Parabéns, Guilherme.