DANIEL FERRAZ e DANIELA MARQUES
Tomamos, como uma das maiores certezas da vida, que um café resolve quase tudo. Aliás, entristece-nos sobremaneira que temos frequentemente queimado a garganta, pois a língua já não usamos. No eixo Rio-São Paulo, até um simples café aguça o sentido, em especial - a audição: dos tribunais ao supermercado, retóricas pontuadas em falácias morais são audíveis como se existisse uma necessidade popular de incitar diálogos recheados de agressões verbais, por meio do cenário político nacional.
No jogo de contextualizar pensamentos, sobrepondo o ódio constante, praticar o silêncio como liberdade, é proteção. Mas até quando? O trilhamento neural do discurso de ódio alavanca os circuitos mentais de todo ser pensante, principalmente daqueles que ainda ousam defender as liberdades, reavaliar caminhos e "dar nomes aos bois", para não adoecer com o emburrecimento teatral de uma sociedade absorta em ignorância.
O discurso do ódio virou uma constância; na boca do cidadão, letrado ou não, cada um com as suas razões imorais ou construídas, ratificam o cenário histórico de violência e caos, discursado (e escancarado) nas linhas de nossas brasilidades. Dos direitos humanos ao tributário, do trabalhista aos fiscais, todo brasileiro acrítico legitima qualquer perda sobre o lastro do desenvolvimento e o combate a corrupção.
A classe média, dotada de bacharelismo instantâneo, promove uma nova onda de posicionamentos esvaziados de fundamentação e perde a noção de cidadania outrora construída em anos de educação crítica e cidadã (mas houve realmente essa era?). Já os vulnerabilizados, gozando de um recém reconhecimento de "ser social" ou de “ser da classe média”, são engolidos pela lacuna deixada pela falta do diálogo. É fácil entender os motivos pelos quais, segundo Jessé Souza em A classe média no espelho, “Hoje em dia, o trabalhador precário não se considera pobre, mas de classe média. Os pobres são apenas os excluídos e marginalizados. A classe média real, por sua vez, se vê como ‘elite’, contribuindo para um auto-engano fatal e de consequências terríveis para o destino da sociedade brasileira e da própria massa da classe média”. Não adiantou uma população com TV e viagem de avião, pois esta segue sem o conhecimento precípuo idealizador de uma nação de direitos.
E nessa coletividade, fundou-se a polarização que não se estancou com as eleições, uma vez que não se discutiu bases ideológicas, mas sim a quebra da dialética. Ousamos dizer que a arrogância dos que estiveram no poder político, nas instituições, no judiciário, nas academias, artes, etc., são também culpados pela concretização de um povo acrítico. “A elite precisa da lealdade da classe média, pois esta é que representa os interesses da restrita elite de proprietários, seja no mercado, no Estado ou na esfera pública. Cabe a ela supervisionar os trabalhadores e fazer a gerência do mercado para os proprietários” (SOUZA, 2018). Tivemos a chance de fazer a diferença, se tivéssemos deixado o salto alto em casa para caminhar pela sarjeta e dialogar sem reticências. Encaremos os nossos espelhos...
Era para ser um breve café, se não nos deparássemos com o espelho na entrada da cafeteria. Naquele momento notamos olheiras, cansaço e, pela primeira vez, percebemos que estávamos descalços, culpados e sem esperança. No evoluir da imagem, retomamos o debate dos nossos próprios fracassos, com a premissa de pequenas observâncias, nesse momento de pequenez racional, já reincidente que marca o ano nonsense de 2019. Nas múltiplas percepções, galgamos avaliar a historicidade da alternância de poder num contexto mundial, retirando desse ciclo períodos sem garantias de direitos; conseguimos perceber que a naturalização do ódio como ideologia e normalização das notícias falsas ultrapassam construções democráticas, liberais ou conservadoras; não obtivemos um amadurecimento político, apenas criamos opositores que reproduzem críticas sem estatísticas e encenações midiáticas, invalidando realidades fáticas, deslegitimando conhecimentos, estudos e tudo capaz de contradizer o que vem sendo alardeado.
O Brasil consumiu, mas não se instruiu. E aos poucos, agora estamos descalços, entre o desespero e o levante, tentando esbravejar para ressignificar a construção do diálogo, revalidar os direitos fundamentais da democracia e gerar confiabilidade as instituições democráticas.
Os aplausos ao modelo neoliberal-conservador-autoritário não cessarão com brevidade, posto a fragilidade da própria democracia em garantir o bem-estar comum. Cada linha constitucional é um pacto social e o populismo antidemocrático não será vencedor se realmente nos propusermos alavancar políticas de conscientização de base, luta e direitos.
A Constituição Federal é o projeto da República; é o pacto social de identidade democrática. Um pacto sem adesão, pois se esvaziou de credibilidade. Cada norma ali contida não está apenas positivada, constitui obrigação cristalina que deve ser cumprida pelo poder público e por toda sociedade. A Constituição Federal não é um projeto filantrópico e assistencialista, como muitas vezes vem sendo interpretado pelo Estado, empresas e terceiro setor, ela é emancipatória.
Quando ficamos diante do espelho, nessa manhã chuvosa, certamente não vimos a mesma coisa, consenso inexistente assim como o empirismo de Berkeley: “se eu não vejo, deixa de existir”, "Ser é ser percebido.". É nesse momento que nos propusemos voltar a falar, pois o silêncio não modifica o nosso cenário. Ainda em Berkeley, "Poucos pensam, mas todos julgam" e assim fomos seguindo.
No país do confete, não nos compete qualquer alerta sobre violência, pois aprendemos a camuflá-las. Em grande escala, todo sangue jorrado por aqui é empurrado para debaixo do tapete. Talvez a sensação romantizada de país amistoso, dessa colheita tardia e anti-civilizatória, nos tenha transformado em indivíduos cansados e atônitos. Quem tinha o dever de bradar, ficou sentado com seus Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro na mão direita e o café na esquerda.
Sim, somos violentos, até no silêncio.
Dormimos no impasse. A governabilidade atual tenta dissociar direitos humanos e democracia, inviabilizando a continuidade futura de uma nação solidária, construída com sólidos valores, liberdade, igualdade e fraternidade (e direitos humanos fundamentais!). O estado democrático de direito está diante de uma ruptura dos direitos individuais, liberdades fundamentais e do pluralismo político. A luta agora é pela manutenção do pacto social.
Estamos diante de espelhos, nos permitindo retornar à crítica fundamental quanto a realização de reformas estruturais que poderiam realmente engrandecer a mentalidade e formação do cidadão consciente. Negligenciaram a informação, constituindo uma população desinformada das garantias de direitos civis e humanos.
O cidadão acrítico não nasce somente da falta de educação em sua formação, mas também da experimentação cotidiana, do contato direto com a violência, da desproteção estatal e toda esta desgovernabilidade que impede a eficácia de políticas públicas de efeito duradouro. Ainda segundo Jessé Souza (2018), ao invés de criticidade, preferimos o narcisismo individual: “o fato de nosso comportamento ter como principal referência a satisfação dos desejos e a legitimação da vida que levamos – algo que, de resto, caracteriza, em gradações distintas, todos os seres humanos. No entanto, no grande número de pessoas para quem a reflexão crítica acerca de si mesmo e do mundo não desempenha papel decisivo, essa dimensão narcísica é ‘infantilizada’ e ‘inflada’, ou seja, elas só aceitam ouvir confirmações de suas próprias ilusões e opiniões, evitando a todo custo qualquer pensamento crítico”.
A nossa governança democrática reflete naquele espelho a síntese endêmica de uma sociedade desigual, inferiorizada e amedrontada com qualquer pensamento que possa invalidar sua revolta. O cidadão de bem tornar-se-á apto ao ódio. Porém, ao deixarmos nossa audição rastreadora, é factível a vociferação dos consternados, de quem não foge à luta.
Vibramos a qualquer instante com a noção de "reexistência" e resistência, e de confrontar o autoritarismo. Sem a arrogância imediatista, ensejamos caminhar descalços e juntos reestabelecer sistemas democráticos de forma inclusiva, para que os retrocessos possam ser silenciados!
É preciso ter pressa no café e adentrar o espelho, recuperar pertencimentos coletivos e como bem disse Galeano: "Na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que morre”.
Precisamos nos manter vivos!
Daniel Ferraz é formador de professores no curso de Letras e segue na luta pelo direito do diálogo democrático. Daniela Marques é advogada, negra e defensora dos Direitos Humanos.
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