- Daniel Ferraz -
Adeus ano velho, feliz ano novo. Impossível e inevitável não escrever sobre o famoso balanço de final de ano e os planos para o futuro. Seria cliché – à la retrospectiva da TV Globinho - se tivéssemos passado por um ano “normal”. Mas não, este ano não foi “normal” e não foi atípico somente por conta da pandemia: ele não foi “normal”, pois para uma grande parcela dos brasileiros o Brasil de 2020 foi uma tragédia. Uma tragédia nos âmbitos da política/governança, do meio ambiente, da economia, da educação, da saúde e dos direitos humanos, para citar alguns. Tudo bem! Se para esses brasileiros o país é um descalabro, uma vergonha/piada internacional, um país desgovernado que nem trilhos mais tem, há outra parcela que acredita que está tudo bem, que está tudo lindo! Essa parcela de brasileiros felizes está representada pelas duas fotografias acima. Retiradas da internet (podemos imaginar que é ficção), elas são fotogramas de um vídeo que circulou esta semana nas redes sociais e que mostra a tradicional família brasileira em uma cerimônia de casamento. A cena bizarra ostenta padrinhos e noiva com armas nas mãos. A noiva empunha uma arma ainda maior. Neste caso, o “faz arminha” foi realmente levado a sério. Há muitos outros exemplos como este, alguns no mesmo tom (fotografia/ultrassom de um feto fazendo arminha), outras mais sérias (decisões sobre armamento populacional). E assim caminha a machucada, frágil e deturpada democracia brasileira: uma polarização chula e copiada dos gringos estadunidenses (bem, pelo menos o de lá caiu).
Ao relembrar as minhas contribuições para a PUB deste ano, percebi que comentei, em agosto de 2020, sobre o mecanismo (global e nacional), qual seja, um câncer instaurado na e pela política e economia no Brasil (e no mundo) que sempre vence. Sempre vence, pois os que detém o poder político e econômico (1% da população), sempre vencem e sempre vencerão. Nesse mesmo sentido, em outubro, indagamos: Mas há como escapar do projeto da modernidade? Há caminhos para além do capitalismo selvagem? Há caminhos outros para além da “escravidão” e escravização contemporâneas? Há como vivenciar outras globalizações, não hegemônicas? A alternativa seria nos mudarmos para fora da Terra? Ou permanecermos em Gaia?
Em setembro, escrevi sobre “O triste Brasil de 2020”: o desmonte da educação ou uma piada de mau gosto”. À época, me preocupava o fato de as políticas educacionais estarem sendo travadas no âmbito de políticas religiosas, algo que para a educação seria uma tragédia e um retrocesso: “Um país que possui um projeto de educação que não respeita a sua evolução histórica e suas conquistas educacionais de décadas, não pode ser levado a sério. Um país em que se confundem os papeis da educação, (uma) religião, um conceito de família, gêneros e sexualidades, não pode ser levado a sério. Um país que tenta eliminar as diferenças por meio da manutenção de linhas abissais entre “o que eu acredito vale” e “o que você pensa não vale nada”, não pode ser sério. Um país que tenta eliminar seu maior educador, reconhecido mundialmente, cujo livro Pedagogia do Oprimido é o terceiro trabalho na área de humanidades mais citado historicamente no mundo, não é sério”. Relendo o texto, percebi, hoje, que discordo parcialmente da conversa que estabeleci com Adnet:
“O lado governista atualmente tem uma forma de comunicação muito breve, é em meme, uma frase, um chora mais. Enquanto a esquerda é muito mais psicologizada, falando de uma maneira foucaultiana, o fascismo moderno… E todo esse discurso acadêmico da esquerda, que eu tenho também, acaba afastando a população, porque não comunica, ele é chato” (Adnet, entrevista).
Embora o humorista tenha total razão nesta afirmação, preciso discordar e dizer que precisamos, sim e cada vez mais, falar de Hannah Arendt, Michel Foucault, Jacques Derrida, Marilena Chauí, Pierre Bourdieu, Frantz Fanon, Judith Butler, Márcia Tiburi, Paulo Ghiraldelli, Paulo Freire, Lynn Mario Menezes de Souza e Walkyria Monte Mór; precisamos falar do que o fascismo, nazismo, racismo, homofobia e misoginia significam, não somente para que não se repitam, mas principalmente porque precisamos ter TODA a população brasileira educada, capaz de entender, dialogar e se posicionar criticamente em relação a todos os conceitos filosóficos que embasam a sociedade que criamos todos os dias de nossas vidas. Enquanto isso não acontecer, a comunicação breve e a academia das redes sociais imperarão. E não digo que academia, universidade, sociedade e redes sociais são incompatíveis, pelo contrário, o debate pode acontecer em todos esses contextos.
Por fim, em novembro busquei confrontar dois líderes incomparáveis e seus discursos e ações sobre as comunidades LGBTQIA+ e homofobia. Enquanto o primeiro, o Papa Francisco, declarou que: “Pessoas homossexuais têm o direito de estar em família. Elas são filhas de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deveria ser descartado (dela) ou ser transformado em miserável por conta disso (...) O que temos de criar é uma lei de união civil. Posiciono-me por isso.”, o segundo, o atual presidente da República do Brasil, afirmou: “Agora tudo é pandemia. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas”. Enfim, tirem suas conclusões.
Revendo esse percurso, só posso chegar a um epílogo: o Brasil de 2020 é algo que eu nunca vi antes e, embora muitos digam que ele é para os fortes, eu digo que ele é para os fracos: os fracos de pensamento mundano, os fracos de intelectualidade, os fracos de educação formal e cívica, os fracos de humanidade, os fracos que conclamam a homogeneidade, em detrimento da riqueza humana que é a diversidade/heterogeneidade. Assim, lembrei-me de um poema atribuído à Brecht:
“
O Analfabeto Político O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.
”
—O texto é atribuído a Bertolt Brecht pela primeira vez em Terra Nossa
Concordo com as peremptórias palavras do poema, porém não vou encerrar com tragédia, afinal um novo ano se aproxima. Um Feliz 2021 a todes que acreditam que tudo isso vai passar, pois o Brasil merece algo muito melhor; a todes que acreditam que não adianta “fazer arminha que passa”, pois é preciso o debate público e fundamentado; a todes que se recusam a ser analfabetos políticos, pois têm consciência que de “o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas” e não são facilmente manipulados; a todes que acreditam na ciência e nas universidades públicas; a todes que um dia puderam ou poderão ler uma obra de Paulo Freire; a todes que acreditam e praticam a diversidade humana, seja ela de raças, de religiões, de gêneros e sexualidades, de classes sociais e econômicas; a todes as/os/es colegas da Revista PUB; a todes que ainda acreditam na educação e nas/nos educares deste país. Que venha 2021, cheio de esperança...
Daniel Ferraz é docente no curso de Letras-Inglês (FFLCH-USP) e forma professores há 25 anos.
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