- CELSO AUGUSTO COCCARO FILHO -
O filme “Era Uma Vez em Hollywwod”, dirigido por Quentin Tarantino, criou um desfecho alternativo para um fato que maculou a história norte-americana no final de década de 1960.
Em agosto de 1969, a atriz Sharon Tate, então casada com Roman Polanski, foi assassinada por integrantes da chamada “Família Manson”.
Assassinatos sem causa definida não eram raros na violenta sociedade norte-americana. Três anos antes, Truman Capote relatara outro crime brutal, na obra “A Sangue Frio”.
Mas os crimes que se tornaram conhecidos como “Caso Tate - La Bianca” extravasaram os limites da literatura policial e da psicopatologia. Para além da questão criminal, o fato é um subproduto da contracultura e dos conflitos e movimentos libertários que dominavam os Estados Unidos naquele final de década.
Após passar metade de sua vida preso, Charles Manson se viu solto e literalmente livre, no “verão do amor” na cidade de São Francisco, no ano de 1967, auge da contracultura e dos movimentos humanistas e da luta pelos direitos civis, estimulados pela rejeição à participação na Guerra do Vietnã.
Notou a transformação naquela sociedade; deve ter se sentido como Rip Van Winkle. Antes rejeitado, agora era acolhido; da vida marginal ao pertencimento!
A diversidade, a alteridade e a tolerância, que tentavam a remoldar a austera sociedade norte-americana, eram receptivas à figura do transgressor, do anti-herói que portasse elementos imagéticos da revolta contra o establishment.
Manson não deixou passar a oportunidade. Compreendia os mecanismos do poder, e seu novo status prometia bons frutos. Na cadeia as relações humanas se equilibram precariamente. A sobrevivência neste meio, por mais de uma década, afiou os seus talentos.
Bastava transportá-los para o presente promissor e aplicá-los na ingênua comunidade jovial e hippie da Califórnia.
Um dos crimes pelos quais sofrera seguidas condenações foi o de rufianismo. As técnicas de sedução e de controle do gigolô foram adaptadas para atrair e manter em torno de si jovens mulheres, algumas até adolescentes.
As meninas eram evadidas de famílias desfeitas, fato social pouco explorado nas várias obras que relataram a formação da “família”.
Há traços comuns na vida destas mulheres, que auxiliam na compreensão do fenômeno, desde a fuga até a atração pelo Haight-Ashbury, e, posteriormente, ao fascínio pelo ex-presidiário.
Eram escassos naqueles tempos os instrumentos de adaptação às transformações e perdas familiares. A afetividade terminava, mas casais continuavam unidos em função de conveniências sociais e econômicas, criando ambiente rancoroso que amputava a educação de seus rebentos e os expulsava, imaturos e inseguros, rumando feito mariposas em direção à luz da promessa de solidariedade e de irmandade dos novos tempos.
Manson era pelo menos quinze anos mais velho que as moças, e captou a puerilidade daquela nova sociedade.
Aprendeu a tocar guitarra na cadeia, e até compunha algumas músicas.
Usou o sexo como instrumento de sedução e de controle. Para as moças fugitivas das famílias puritanas ou “caretas”, era uma conquista libertária e de maturidade pessoal.
Com ajuda do LSD, que foi proibido apenas em 1967, e do fascínio transgressor, Manson (traduzido, o “filho do homem”), era o guru, o dono do saber e da revelação.
Usou as moças e o sexo livre para atrair alguns homens e a “família” ganhou força e aos poucos se transformou, sem perder a fachada de comunidade hippie e musical, num bando criminoso, que roubava carros e que traficava drogas.
A ambiguidade permitia que o grupo, que se mudara para Los Angeles e se instalara em um rancho usado como cenário de filmes do faroeste – o Spahn Ranch, usado em tomadas de “Bonanza” - se imiscuísse no mundo hollywoodiano e praticasse suas atividades criminosas.
Os membros da família talvez não percebessem que eram usados; a nova moral esmaecia as nuances éticas, e o elogio à transgressão tornava tudo aceitável. O ilícito era algo intangível, definido pela repressão, pelos “porcos” donos do sistema.
Foi nesta ocasião que o baterista da premiada banda “The Beach Boys”, Denis Wilson, abrigou a família em sua casa em Malibu e gravou uma música composta por Charles Manson, “Cease to Exist” (“Deixe de Existir” – eis um trecho da letra, que revela o método de Manson: “Garota bonita, garota bonita, deixe de existir. Venha e diga que me ama, desista do seu mundo”).
Outro fato decisivo para os futuros crimes ocorreu: Wilson apresentou Manson a Terry Melcher, produtor musical e filho da atriz Doris Day. Mas o empresário não se encantou com Manson e frustrou os planos de notoriedade e de riqueza da “família”. Este fato os enfureceu.
Sob a fachada pitoresca, continuavam os roubos de carro, o tráfico de drogas, a compra de armas e o amor livre para atrair os consumidores. A música, o sexo e o misticismo eram um preço baixo a se pagar às moças da família.
O primeiro crime ocorreu em julho de 1969. Um músico chamado Garry Hinman teria revendido drogas da “família” ao grupo de motociclistas “Straight Satans” e não conseguiu receber o valor combinado.
O músico foi assassinado por um dos integrantes da família. Segundo ordens de Manson, escreveram a sangue na parede da casa do músico a frase “Political Piggy” e gravaram uma pata de felino, uma pantera. Para que? Para atrair a atenção da polícia para o “Panteras Negras”, grupo de autoproteção racial dos negros americanos, muito ativo naqueles tempos.
A tensão crescia na sociedade americana. No ano de 1968 ocorreram os assassinatos de Bob Kennedy e de Martin Luther King. Naquele ano também ocorreu a Ofensiva do Tet, cujas baixas acentuaram a insensatez da luta no Vietnã. Os conflitos raciais se tornavam corriqueiros e violentos, especialmente na Los Angeles de Manson. A repressão policial escolhia seus alvos, os negros. O movimento Panteras Negras ganhava corpo e as políticas favoráveis às liberdades civis sofriam o peso da reação.
Em janeiro de 1969 o Partido Republicano retornou à Presidência, após mais de uma década de domínio democrata, com a eleição de Richard Nixon.
O assassino do músico fora preso, poderia comprometer o bando. Era necessário manter a atenção da polícia desviada para o Panteras Negras. O ódio racial e a ferocidade da polícia facilitaria este engodo.
Manson incorporou ao seu grupo a linguagem da violência. Mas convencer os jovens “paz e amor” a matar pessoas exigiria aprimoramento do discurso.
Manson recorreu aos Beatles.
Era comum naquela época agregar à cultura do rock elementos de reforço na atração comercial. Capas de discos trariam mensagens cifradas, cabalas seriam proferidas na rotação em sentido contrário.
Uma revolução era iminente. Os negros se voltariam contra os brancos. O grupo de Manson deveria provocar esta guerra, esconder-se e retornar vitorioso, epopeia que estaria oculta na letra do rock “Helter Skelter”.
Os negros se levantariam; estava na letra de “Black Birds”: “Pássaro negro que canta na calada da noite, use as asas quebradas e aprenda a voar; por toda a sua vida, você estava apenas esperando esse momento surgir”.
Contra os porcos, donos do sistema, segundo “Piggies”: “Você encontrará os grandes porquinhos revolvendo a sujeira, sempre há camisas limpas para eles se esbaldarem nas suas pocilgas... eles não se importam como que está acontecendo, em seus olhares existe algo faltando, o que eles precisam é de uma boa palmada”.
O papel da família estava claro, em Helter Skelter: ”Quando eu chego ao fundo, eu volto ao topo, eu paro e me volto, saio para outra volta e eu chego ao fundo e te vejo novamente!”.
E assim, drogados e armados, os jovens invadiram a casa de Roman Polanski, que antes era habitada pelo mesmo Terry Melcher, que rejeitara o talento de Manson. A vingança e o plano de distração, dando utilidade dupla ao crime.
Foram mortos Sharon Tate e três amigos do Jet set californiano, mais um rapaz amigo do caseiro, que foi pego ao sair da residência. No dia seguinte, invadiram outra casa e mataram o casal La Bianca. Foi gravada na parede da casa de Tate, com o sangue das vítimas: “PIG”. E na casa dos La Bianca: “Helter Skelter”.
Charles Manson não participou das ações.
O grupo se refugiou no deserto (o “Death Valley” ou “Vale da Morte”); mas não ocorreu a guerra racial prometida nem os Panteras Negras foram acusados dos assassinatos.
Uma das moças da família foi presa por outro crime e, na cadeia, vangloriou-se dos homicídios a companheiras de cela, fio da meada para o encarceramento do resto do grupo.
Como condenar Charles Manson pelos homicídios, pelos quais fora o real responsável? Não participara dos crimes nem poderia, tecnicamente, ser tido como mandante, embora fosse inegável a indução.
O promotor do caso, Vincent Bugliosi, voltou contra o feiticeiro o seu próprio feitiço: comprovou o convencimento obstinado dos executores pela inevitabilidade do “Helter Skelter”, e das mentes alteradas pelas drogas conseguiu extrair a prova de que Manson manipulara as ações e o seu resultado, do início ao fim. Provou o envolvimento de Manson e a motivação dos assassinatos.
Os crimes foram usados por Nixon, para empreender a política de reação ao liberalismo dos costumes e para estender a mácula aos protestos libertários. Formou-se o pano de fundo para a revolução neoliberal, que foi interrompida pelo Watergate e que se expandiu após o fim da Guerra Fria e a dissolução da União Soviética.
Os jovens e seu líder foram condenados à morte, mas foram agraciados pela decisão do Tribunal local, que considerara a pena inconstitucional. A lei foi posteriormente adaptada, mas não poderia mais retroagir. Todos foram condenados à prisão perpétua. Manson morreu na cadeira, e os agora não mais jovens estão presos pelos crimes cruéis que cometeram há cinquenta anos.
A história transcendeu os aspectos criminais. Ocorreu o efetivo e real entrelaçamento dos movimentos artísticos e culturais, bem como o protagonismo de vários ícones do entretenimento, tão caros aos norte-americanos, num cenário político-social instável e de tendência revolucionária, lá e no mundo (Maio em Paris, Primavera de Praga), além da manipulação e da mistificação de ideais e de valores, em prol de interesses, maiores e menores, que se valeram, como de hábito, das pulsões coletivizadas de Thanatos e de Eros.
Celso Augusto Coccaro Filho escreve todo dia 30 de cada mês na Revista Pub - Diálogos Interdisciplinares. É professor de Direito, escritor e procurador do município de São Paulo, além de sócio fundador do IBAP.
Celso, um registro muito completo desse momento tão marcante da contracultura, em um paradoxo inconciliável entre o flower power e a violência totalmente gratuita. A citação à ficção delirante de Tarantino é bastante oportuna. 👏👏👏