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QUANDO JUÍZES JULGARAM JUÍZES

- CELSO AUGUSTO COCCARO FILHO -

O filme “Julgamento em Nuremberg”, de 1961, é uma obra maiúscula, que explora desdobramentos pouco conhecidos daquele julgamento.


É notório o julgamento inaugural, no qual perfilaram no banco dos réus as autoridades do primeiro escalão do Reich, entre elas os fundadores do Partido Nacional-Socialista, Hermann Göering e Rudolph Hess, além do teórico-guru Alfred Rosenberg.

Este fato histórico marcou positivamente a luta pelos Direitos Humanos, com inestimável auxílio na criminalização internacional do genocídio e outros atos atentatórios à humanidade.


Mas é um julgamento imperfeito, pela inegável suspeição moral da parte acusadora.


A Inglaterra ainda era a “Pérfida Albion”, ícone do imperialismo predador, e participou ativamente das manipulações que acabaram no conflito mundial. Tentou lançar a URSS contra a Alemanha, no Pacto de Munique (1938), ao apoiar as reivindicações germânicas em zona de influência eslava. Usou a defesa da integridade do território polonês como mero pretexto, ao ignorar a agressão soviética de 1939. Foi a responsável por milhares de mortes de civis nos infames bombardeios noturnos de Hamburgo e de Dresden (este retratado no “Matadouro 5”, de Kurt Vonnegut).


O seu derivado norte-americano não se saiu melhor. Além da obviedade de Nagasaki/Hiroshima, atraiu o Japão para a evidente reação bélica, ao realizar o severo bloqueio econômico daquela agressiva nação, em 1941. Seus empresários anticomunistas flertaram com o nazismo. Os “Estudos de Tuskegee” (uso de negros como cobaias da evolução da sífilis, na década de 1930), a segregação das tropas negras na guerra, o racismo assumido no Sul e velado no Norte, não o colocavam numa situação confortável como acusador e julgador de crimes raciais.

A União Soviética era a nação dos expurgos homicidas e do Gulag. As perseguições e os assassinatos provocados pelas mais simples discordâncias políticas envergonhavam a “Noite das Longas Facas” nazista. Entre Stalin e Hitler havia mais semelhanças que diferenças. O pacto Molotov-Ribbentrop foi acintoso. A divisão da Polônia com os nazistas e a invasão da Finlândia e dos Países Bálticos, em 1939, como resultado do protocolo secreto daquele pacto, em nada difere da agressão bélica germânica.


No curso da guerra se revelou, porém, uma grande diferença de grau. Os campos de extermínio alemães e o perfil criminoso da gang nazista eram insuperáveis e criaram o álibi para a consciência dos juízes e dos promotores aliados. A formação democracias e do comunismo não era, também, marcada pela pulsão da morte, que transfixava a alma nazista.


Enfim, embora a justiça tenha sido aplicada pelos vencedores, a causa dos Direitos da Humanidade foi engrandecida.


Voltando ao filme, o cenário é a terceira etapa dos julgamentos continuados de Nuremberg, denominada “Processo contra os Juristas”, que se desenvolveu de fevereiro a dezembro de 1947.


Antecederam esta etapa o Julgamento contra os Médicos e o Processo Milch; e a sucederam os casos Pohl e Flick, o Processo IG Farben, o Processo contra os Generais, o caso RuSHA, Processos Einsatzgruppen, Krupp, contra os Ministros e o Comando do Exército.


A obra explora alguns tópicos interessantes: a dificuldade enfrentada pelo juiz norte-americano em julgar colegas magistrados, que aplicaram as leis vigentes no período é um grande dilema.


O outro resultou das influências decorrentes do início da Guerra Fria, do Bloqueio de Berlim, e pela necessidade de atrair os alemães para o lado das potências ocidentais, o que recomendava o recuo nos processos genéricos de “desnazificação”.


A trama flui pelas imputações aos juízes alemães: aplicação da pena de esterilização para desafetos políticos e da pena de morte pelas relações sexuais inter-raciais.


A defesa argumentou que a “autoridade legal da ordem jurídica” justificava estas decisões. As leis editadas regularmente no período capitulavam os ilícitos e as sanções.


Dois casos concretos foram explorados: um alemão cujos pais eram filiados ao Partido Comunista, e que sofreu a pena de esterilização. Uma moça alemã que se envolveu com o locador de seu imóvel, um velho senhorio judeu, que foi condenado à pena de morte.


As cenas que envolvem o advogado dos juízes alemães são notáveis. O ator Maximilian Schell levou o Oscar de 1961 pela representação de um advogado formado naquele período conflituoso, e que havia sido aluno e admirador de um dos réus, apresentado como um renomado jurista do Reich (ator Burt Lancaster).


Ao interrogar o rapaz, procura provar que a esterilização não teria decorrido da filiação partidária dos pais, mas do fato de que era mentalmente limitado (“imbecil”, como retratado no filme). Insiste nisto; a pena era legal, o réu era mentalmente retardado e a lei admitia a ablação eugênica; o comunismo dos pais não teve nada a ver, não ocorrera erro judicial!


Ao interrogar a moça, que revelava ter tido relação de amizade paternal com o senhorio, e nada mais do que isso, traz provas de que não, tivera efetivamente relações sexuais ilícitas, o processo correra sem falhas e a pena era legal, o juiz que a aplicou não errara, não poderia responder pela morte do senhorio...


O advogado não parecia notar que argumentava como um extremista do nacional-socialismo, condição que negava. A prevalência despercebida desta personalidade adquirida pela educação ideológica é um dos pontos altos do filme.

Quando o processo rumava ao seu desfecho, surge a notícia do Bloqueio de Berlim pelos soviéticos e a necessidade de atrair a simpatia dos alemães para a causa ocidental.


O promotor é então seduzido com argumentos externos que, por aqui, receberiam a vulgar denominação de “deixa disso”: há realidades políticas supervenientes e importantes, o mundo mudou, o ressentimento que impulsiona estes julgamentos deve ser superado...


Assim, após ignorar heroicamente a sedução vinda de outra fonte, uma bela e importante nobre alemã (a atriz Marlene Dietrich), viúva de um militar derrotado e executado pelos vencedores, o juiz americano profere a sua sentença, e condena os seus colegas juízes à prisão perpétua.


Este juiz foi retratado no filme por um provinciano magistrado do Estado do Maine, chamado Dan Haywood (o ator Spencer Tracy), que fora forçado a se aposentar porque não conseguira ser reeleito. Há uma crítica velada a esta forma de nomeação de magistrados nos Estados Unidos, com a alusão de que o juiz “mexera com quem não devia”, em contraste com a firme posição que manteve no julgamento.


O fundamento da sentença é de obviedade hollywoodiana: os juízes sobrepujaram os limites da justiça natural, superando-os pela lei, no seu aspecto formal, e assim o fazendo violaram a dignidade humana e devem ser condenados.


Os diálogos posteriores é que enriquecem o veredito e a obra cinematográfica.


Ao elogiar a precisão argumentativa do advogado alemão, o juiz lhe diz que “ser lógico não significa estar certo”.


Aos juízes condenados: se fossem todos vocês loucos ou perversos, tudo o que aconteceu não passaria de um acidente natural, uma grande catástrofe causada por força maior; mas os senhores estão sadios e são juízes...


O réu principal e jurista renomado revela profunda constrição. Garante-lhe que não sabia que milhões morreriam, que jamais concebera ou aceitara a hecatombe do genocídio. E lhe pede: acredite nisto, é importante. O juiz lhe responde: no momento em que você condenou o primeiro homem que sabia ser inocente, aceitou este futuro que agora rejeita como passado indesejável...


Como seria se este simpático personagem de ficção repentinamente se materializasse no Supremo Tribunal Federal, aqui no Brasil?


Quem desejar poderá escrever o seu próprio roteiro...


 

Celso Augusto Coccaro Filho, sócio fundador do IBAP, é escritor e procurador do município de São Paulo.



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