- Arnaldo Domínguez de Oliveira -
Num tempo em que nos encontramos, ao dizer de uma analisante, "encalacrados" pela ascensão aos poderes da estrutura das perversões (ela nunca esteve ausente da política. "Filiar-se a um partido é ficar blindado para cometer transgressões", afirma um/outro analisante que ocupou o cargo de Secretário da Fazenda num estado brasileiro corroído pela corrupção e que, mesmo assim, não se filiou a nenhuma legenda partidária, motivo pelo qual pagou um altíssimo preço, moral, familiar e econômico, retaliação pelas ações éticas aplicadas, e, no entanto, orgulha-se em razão da dignidade que conseguiu manter), cabe perguntar: - Seremos capazes de sustentar um clima de liberdade que nos permita divergir? Tanto na esfera pública quanto na esfera psicanalítica?
Suponho que a experiência psicanalítica nos emancipou do "rabo preso" ao qual todos/as estávamos submetidos em razão do "eu ideal" gerenciado pelo "ideal do eu", possibilitando a exposição de uma "certa" simplicidade de expressão.
Ambivalência, ambiguidade estrutural, recusa da castração, desafio, transgressão, manipulação, são instrumentos das perversões no seu intuito de "renegar".
Já que o gozo dos perversos consiste, fundamentalmente, em driblar a lei perante um terceiro testemunho, sobre tudo se este estiver preso por um segredo que ele não pode revelar. E alí está a graça desta ação.
O desafio estrutural dos perversos os colocará sempre numa posição de "defensores da lei", "Singular defensor de Deus", definiu Lacan.
Sob a capa de fautor de elevadas e nobres causas esconde o intuito para melhor disfarçar seu domínio da lei do gozo, isto é, executar seus planos diante do testemunho de outro que sabe, mas que tem que se calar.
Muitos serão os colaboracionistas, por exemplo, no caso das vítimas de maus tratos que se calam porque ele/a próprio/a se fez "feitiço" do outro ao seduzi-lo e oferecer seu corpo para o gozo sexual.
Na história há, dentre tantos exemplos, o caso da Hungria: no período das entreguerras, assumiu a regência do reino o Almirante e estatista Miklós Horthy de Nagybánya (1868-1957). Ele implantou um sistema autocrático conservador carregado de elementos essenciais do fascismo, semelhante em muitos aspectos ao atual governo brasileiro.
Os psicanalistas da primeira geração pós-freudiana foram expulsos do país, dentre os quais, Franz Alexander (1891-1964) que emigrou, forçado, para Berlim em 1920. Em 1924 apresentou uma versão da teoria freudiana associada às políticas em vigor no leste europeu. Disse que o problema da neurose definia uma "fronteira" na qual, o recalque pulsional, representante ideativo da pulsão no "Isso", não era outra coisa que uma mercadoria proibida e barrada na alfândega da fronteira do país do "eu", onde o "supereu" é um fiscal pouco inteligente e corruptível.
Assim, nesse sistema neurótico, sempre há um contrabandista que suborna o fiscal (o japonês da Federal) para poder atravessar a mercadoria proibida. A Muamba.
Alexander, que posteriormente criaria a "Escola de Chicago" nos EEUU, e a Medicina Psicossomática, pois, afinal, a úlcera de estômago, muito frequente, não era outra coisa que uma demanda de amor alimentar capaz de aumentar a descarga de secreção de suco gástrico quando aliada à pulsão de morte, cuja agressividade se volta contra o próprio eu corporal do doente, questionando já o equívoco do mestre Freud: a neurose não é o negativo da perversão. (Todos somos um pouco perversos).
Freud não confiava na simplicidade de Alexander e o disse numa carta para Abraham, no entanto, seu próprio filho, Oliver, se tornou seu analisante.
Charles Odier, analisante de Alexander, teria retirado desta perspectiva a lógica de "sua" Neurose sem Complexo de Édipo, criticada por Lacan no Seminário 5?
Em 1950, durante o primeiro Congresso da Associação Mundial de Psiquiatria, organizado em Paris por Henri Ey, Alexander declarou:
"A Psicanálise pertence a um passado em que ela teve que lutar contra os preconceitos de um mundo pouco preparado para recebê-la.
Hoje podemos permitir-nos divergir entre nós, porque a pesquisa e o progresso só são possíveis em um clima de liberdade".
Retomo, então, para deixar em aberto, a questão inicial, que é o motor pulsional deste pequeno texto: - Saberemos sustentar um clima de liberdade conquistado a tão duras penas por aqueles que nos precederam?
Ou sucumbiremos perante a proliferação daqueles que se auto-definem "Povo de Deus", singulares defensores de "sua" existência?
Quero dizer, perante o triunfo da perversão?
Itaquaciara, 25 de julho de 2019
Arnaldo Domínguez de Oliveira é Psicanalista.
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