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A LEI DO ABATE, A LUTA CONTRA A CAÇA DE ANIMAIS E O GENOCÍDIO NEGRO. QUE VIDAS NOS IMPORTAM?

Atualizado: 5 de dez. de 2023


João Alfredo Telles Melo[1]


Para Marielle Franco (in memorian), Luciene Lacerda e Talíria Petrone





“Recentemente, estamos vivendo no nosso país uma série de retrocessos que vão contra toda a luta pelos direitos dos animais até hoje. Proibida desde 1967, a caça de animais silvestres na verdade nunca deixou de existir no Brasil e esse é um dos principais fatores que levam à extinção de várias espécies ameaçadas [...]” (trecho de abertura do abaixo-assinado contra a liberação da caça de animais silvestres no Brasil[2].


"A polícia vai mirar na cabecinha e... 'fogo’, diz novo governador do Rio” (Governador Wilson Witzel, explicando a “Lei do Abate”[3]).


“O racismo à brasileira mata duas vezes. Mata fisicamente, como mostram as estatísticas do genocídio da juventude negra em nossas periferias, mata na inibição da manifestação da consciência de todos, brancos e negros, sobre a existência do racismo em nossa sociedade” (Kabengele Munanga, antropólogo, professor da Universidade de São Paulo[4])


Duas pequenas notas explicativas são necessárias para introduzir o presente texto. Primeiro, de onde eu falo. Segundo, por qual razão escrevo. Meu lugar de fala, é, fundamentalmente, o de um militante que se reivindica ecossocialista/anticapitalista, portanto, ecologista, socioambientalista e humanista, na compreensão da profunda imbricação que as duas questões – a defesa da natureza e dos direitos humanos – têm para o futuro de nossa existência na casa planetária. Ao tratar, portanto, aqui da denúncia do racismo, não pretendo falar em nome do movimento negro (que, por seus militantes e formuladores teóricos, é quem tem legitimidade para tanto), mas, na relação de solidariedade como apoiador, que sou, da luta antirracista.


A segunda nota se refere à razão porque escrevo estas reflexões, e para quem escrevo, também. Ela vem da observação sobre a distância, e, por vezes, confronto, entre dois movimentos importantes: de um lado o(a)s ecologistas, especialmente, os que se dedicam à luta pelo direito dos animais e, de outro, os militantes de direitos humanos, em especial, aquele(a)s que militam na luta antirracista em nosso país[5]. O que se pretende aqui é fazer uma provocação, no bom sentido da palavra. Um diálogo que penso se faz mais necessário que nunca, a partir da compreensão de que a sociedade brasileira é marcada pelo chamado racismo estrutural, que nem sempre é percebido em nossas atitudes e condutas.


Para Silvio de Almeida, autor do livro “O que é Racismo Estrutural” (Letramento, 2018):

"O racismo faz parte da vida social e a gente não consegue compreendê-lo de uma maneira objetiva, real, verdadeira, sem olhar de que forma ele se naturaliza e constitui os afetos das pessoas – de tal forma que uma pessoa pode se considerar “muito boazinha” e reproduzir nos seus atos hierarquias raciais, colocando-se no seu lugar e colocando os outros em seus lugares, apesar de ter relações afetivas com essas pessoas."[6].


Os fatos que provocaram esta minha escrita se cruzaram, mais ou menos, no mesmo lapso temporal, nestes tempos de terríveis retrocessos sociais e ambientais, e dizem respeito à luta – com a qual sou absolutamente solidário – contra a liberação da caça de animais silvestres (um dos motes da campanha do celerado que, atual e infelizmente, ocupa a presidência da República) e aos últimos eventos envolvendo a execução (palavra mais que apropriada) da malsinada “lei do abate” pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.

Como ser humano, me sinto envergonhado de que, enquanto espécie, sejamos apenas 0,01% dos seres vivos e já tenhamos exterminado 83% dos mamíferos[7]. A grande aceleração[8] que estamos vivendo desde o início da era industrial, na incessante busca do lucro a qualquer preço, fez com que o planeta tenha adentrado na sexta grande extinção em massa das espécies (a última se deu há cerca de 65 milhões de anos atrás, quando ocorreu a desaparição dos dinossauros), cuja taxa de extinção hoje já é 100 vezes maior que o normal[9] (Por isso, todo apoio à luta contra a caça de animais silvestres)!


Como cidadão brasileiro e humanista, me sinto também envergonhado e indignado não só com o contínuo genocídio que se perpetra contra a população humana afrodescendente em nosso país, desde a grande diáspora africana, quando veio sequestrada e escravizada para cá[10], mas, em especial, com o silêncio e omissão de grande parte de nossa população, inclusive dos que militamos pelos direitos humanos e ambientais.


Senão vejamos: qual foi a repercussão que teve o vídeo, postado pelo governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, no último dia 4 de maio, onde ele comanda uma operação com atiradores de elite (snipers) fortemente armados, na cidade de Angra dos Reis, disparando do alto contra a população que mora em comunidades pobres naquela cidade, a pretexto, segundo suas palavras, de “dar fim à bandidagem”[11]? Soube-se depois que uma tenda de oração foi metralhada com dez tiros em apenas um segundo. Por muita sorte, não havia ninguém no local e não foram registradas vítimas fatais[12].

Mesma sorte que não tiveram os oito homens fuzilados dois dias depois no Complexo da Maré, em circunstâncias não explicadas, cujas vítimas não foram à época identificadas[13]. O fato é que há vídeos de artilharia sendo disparada de helicópteros enquanto a população (inclusive, crianças), em pânico, corria para se abrigar dos tiros[14].


"Como um autocrata, o governador confessa que já estaria se utilizando dos atiradores de elite, ainda que não haja divulgação."

Tais fatos, que deveriam chocar a consciência democrática e humanista das autoridades dos poderes da República e de todos nós, decorrem da omissão desses mesmo poderes – e do silêncio (e, em alguns casos, do apoio) de grande parte da sociedade –, tanto no período eleitoral, como após a posse, onde o então candidato e hoje governador anunciou, sem nenhum pudor, que sua “política de segurança” seria realizada, como de fato se tornou, a política da “licença para matar”, a das execuções sumárias, por meio desses atiradores de elite[15]. Como um autocrata, o governador confessa que já estaria se utilizando dos atiradores de elite, ainda que não haja divulgação[16].


O fato é que essa “política pública”, calcada na aplicação de uma “pena de morte” informal e absolutamente ilegal (sem devido processo legal, direito de defesa ou apelação), que sempre foi tolerada no país e agora estimulada pelo governador do estado, fez com que o número de mortes por intervenção policial explodisse no Rio de Janeiro: foram 434 execuções só nos primeiros três meses deste ano[17]. Macabra estatística que fará, com certeza, ultrapassar o número de 1.534 pessoas assassinadas pela polícia no estado do Rio no ano passado[18]. Abra-se aqui parêntesis para perguntar: quantos manifestos, quantos abaixo-assinados esses crimes motivaram?


Antes que se naturalize essa matança, vale aqui trazer alguns poucos, mas, relevantes, dados levantados pela Anistia Internacional em sua campanha mundial contra a pena de morte. Foram 690 execuções em 20 países que aplicam a pena capital em todo o ano de 2018. Em duas dezenas de países em um ano, temos um número apenas um pouco maior de pessoas mortas que a quantidade que foi causada por policiais em um único estado do Brasil, em apenas três meses[19]!


Estamos, em nosso país, diante do que Berenice Bento chama de “suspensão do Estado de Direito”, que é quando o poder soberano traz para seu interior, no que ela designa de “entranhas da governabilidade”, o “poder da morte”. Para a autora, no Estado brasileiro, “a ‘excepcionalidade’ é estruturante do Estado”, pois essas pessoas (população carcerária, moradores de comunidades e favelas etc.) estariam no que ela designa de “zona de indiferenciação”: “não estão mortos, tampouco vivos porque estão fora das condições constitutivas do Estado de direito”[20].


Daí que não se deve olvidar – antes, pelo contrário, há que se denunciar! – que essas execuções têm uma caracterização bastante evidente de um verdadeiro genocídio, já que 90% dos assassinados são homens negros[21]. Genocídio – crime previsto pela Lei 2.889/56 – foi a expressão usada pelo grande pensador afro-brasileiro Abdias do Nascimento, em seu clássico libelo intitulado “O Genocídio do Povo Brasileiro”[22], que se inicia com as definições do conceito, a partir de verbetes de dicionários, um dos quais estabelece que o significado da palavra é “o uso de medidas deliberadas e sistemáticas [...] calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um povo” (p. 15).


O filósofo camaronês contemporâneo Achille Mbembe, em seu ensaio sobre “Necropolítica” (conceito por ele proposto para explicar as políticas de morte que submetem vastas populações a “condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’”[23]), ao analisar o poder do senhor sobre o escravo, assim escreve:


"A humanidade de uma pessoa é dissolvida até o ponto em que se torna possível dizer que a vida do escravo é propriedade de seu dominador. Dado que a vida do escravo é como uma “coisa possuída” por outra pessoa, sua existência é a figura perfeita de uma sombra personificada."[24]


Selene Herculano, ao definir o termo “Racismo Ambiental”, que se originou, nos anos de 1980, por meio da luta antirracista contra a construção de aterros sanitários e outras atividades impactantes em bairros negros nos Estados Unidos, conjugando, portanto, essa dupla afetação (racial e ambiental), observa que se trata de “um processo social de desumanização, de recusa de direitos; é uma forma coletiva de pensar e de agir que naturaliza hierarquias e desigualdades sociais [...]" [25].


Seria esse processo de desumanização, que transforma a população afrodescente em “sombra personificada”, desde a escravidão, quem poderia explicar a pouca solidariedade de vários segmentos da sociedade brasileira ao genocídio perpetrado? A pergunta de Berenice Bento, no artigo já mencionado, é quase que um grito ensurdecedor: “o que faz com que o Outro não seja reconhecido como humano”?


Ora, para os que militamos na causa ecológica, socioambiental e ecossocialista, a visão do neoconstitucionalismo latino-americano, inspirado nos povos originários andinos do Equador e da Bolívia, ao trazer a compreensão de que a natureza tem direitos, amplia o escopo dos direitos humanos. Em outros continentes, no mês de março do ano de 2017, importantes decisões reconheceram, na Índia, aos rios Ganges e Yamuna e na Nova Zelândia, ao rio Whanganui, a qualidade de sujeitos de direitos[26]. Ou seja, os tribunais ao reconheceram os direitos da natureza, “humanizaram” esses elementos naturais, os rios, como fazem com relação aos animais os assim designados de “animalistas” ou “protetores”.


Como então aceitar a desumanização dos humanos afrodescedentes (porque se trata disso em última análise, quando silenciamos) ao tempo em que humanizamos a natureza e, dentro dela, os animais, para reconhecer seus direitos? Se somos todos humanos e fazemos parte do que Edgar Morin denomina de uma mesma “comunidade de destino”[27], porque somos indiferentes, coniventes com o sofrimento, a violência, o genocídio que se abate sobre o povo negro no Brasil?


Acredito que nós, que militamos nos movimentos ecológicos e de direitos humanos, temos como horizonte uma nova sociedade sem nenhuma forma de dominação, exploração, exclusão, fundada na solidariedade, no humanismo e no respeito à natureza e à diversidade humana, sexual, cultural e étnica. Por isso, todas essas causas nos afetam. Por isso, vidas humanas negras nos importam. Por isso, defendemos os direitos da natureza e os direitos humanos.


Concluo trazendo a advertência feita por Abdias do Nascimento há mais de quarenta anos e que é ainda extremamente atual:


"O silêncio equivaleria ao endosso e aprovação desse criminoso genocídio perpetrado com iniquidade e patológico sadismo contra a população afro-brasileira. E nossa repulsa profunda e definitiva, engloba o inteiro complexo da sociedade brasileira estruturada pelos interesses racistas e capitalistas do colonialismo, até hoje vigentes, os quais vêm mantendo a raça negra em séculos de martírio e inexorável destruição."[28]


Vidas negras importam! Cada vida importa!

[1] Advogado, ex-parlamentar (PT, depois, PSOL), professor de Direito Ambiental e de Direitos Humanos, membro da RENAP, Rede Nacional do(a)s Advogado(a)s populares, e da APRODAB, Associação do(a)s Professore(a)s de Direito Ambiental do Brasil, e presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/CE.





[5] Ainda que não seja o objeto central deste pequeno artigo, importante dizer que essa diferença se exprimiu muito fortemente quando houve o julgamento da constitucionalidade do sacrifício de animais em rituais de religiões de matriz africana, pela incompreensão, por parte dos movimentos de defesa animal, de como o sagrado se manifesta nessas religiões (cf. http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/stf-decide-que-e-constitucional-o-sacrificio-de-animais-em-cultos-religiosos-de-matriz-africana).




[8] Sobre “grande aceleração”, expressão criada pelo International Biosphere-Geosphere Programme, veja https://pt.slideshare.net/IGBPSecretariat.



[10] Calcula-se que foram 1.700.000 (um milhão e setecentos mil) africanos trazidos, na condição de escravos, para a Bahia, dos quais 200.000 (duzentos mil) aproximadamente morreram na travessia oceânica da África para o Brasil (cf. https://correionago.com.br/portal/africa-brasil-numero-de-escravizados-e-quase-o-dobro-do-estimado/).











[20] Cf. “Necropioboder: quem pode habitar o Estado-nação”, disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8653413;



[22] Editora Perspectivas, 4ª. Edição, São Paulo, 2018.



[24] Idem, p. 132.


[25] Cf. Racismo Ambiental: à guisa de conclusão. In HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania (orgs.). Racismo Ambiental. I Seminário sobre Racismo Ambiental. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006, pag. 320.



[27] Cf “Terra-Pátria”, escrito com Anne Brigitte Kern”, publicado pela Editora Sulina, Porto Alegre, 2005.


[28] Op. cit., p. 170.


 


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2 Comments


juliocesarsuzuki
juliocesarsuzuki
May 28, 2019

Manifesto fundamentalmente em defesas direito à diversidade étnica!!!!!

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ibraimjrocha
ibraimjrocha
May 27, 2019

Uma verdadeira carta de direitos. Parabéns

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