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A relação entre direito urbanístico, prevenção de tragédias e preservação dos recursos naturais

Atualizado: 5 de dez. de 2023


- Davi Beltrão de Rossiter Corrêa -


A tragédia de Brumadinho reacendeu o debate acerca do risco que acompanha a execução de grandes projetos voltados à exploração de recursos naturais. Atividades de alto impacto ambiental e social, como a mineração, representam um risco permanente para os cidadãos que residem próximos a zona explorada. Os riscos decorrem tanto da poluição e contaminação dos recursos naturais quanto da possibilidade de rompimento das barragens construídas para viabilizar o funcionamento das mineradoras. A atividade industrial é geradora de perigos em dimensões até maiores que os desastres naturais.


Seja por meio da regulação legislativa ou mediante a regulamentação burocrática para definição de critérios para a exploração de atividades causadoras de elevado impacto ambiental, a atuação pública se torna imprescindível para a prevenção dos riscos, mediante a ordenação do crescimento urbano e concretização do direito humano à cidade sustentável. Nesse contexto, o urbanismo desponta como importante técnica de criação, desenvolvimento e reforma das cidades, havendo uma nítida coincidência entre o direito urbanístico e a função pública do urbanismo, com o escopo de controlar o desenvolvimento urbano e promover a gestão e desenvolvimento da cidade de modo sustentável.


A ausência de um arcabouço jurídico marcou todo o período de crescimento rápido das cidades brasileiras no século XX, especialmente na segunda metade, gerando um descompasso entre a ordem jurídica e os processos socioeconômicos e ambientais. O paradigma civilista liberal clássico revelou-se insuficiente para lidar com todos os espectros do fenômeno multidimensional de mudanças territoriais e transformação de um país predominantemente rural-agrário em urbano-industrial. O surgimento de favelas e periferias representou muitas vezes uma tentativa dos indivíduos de residirem próximo a setores industriais e fábricas onde havia disponibilidade de emprego.


No regime da Constituição de 1988, a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182, caput). Para a propriedade urbana, o cumprimento de sua função social tem como requisitos: a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (art. 186, II e IV). Consta no texto constitucional ainda que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225, caput).

O objetivo da política urbana no plano constitucional é o de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade para garantir o bem-estar de seus cidadãos, ou seja, realizar o direito humano a cidades sustentáveis, inseridas em um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Com a entrada em vigor do Estatuto da Cidade em 2001 o direito urbanístico passou a ter o escopo de, superando a dicotomia entre urbano e rural, consolidar as normas que regulam tanto a atividade urbanística quanto a ordenação da atividade edilícia. No Estatuto da Cidade, a ordem urbanística tem o sentido de ordenamento – conjunto de imposições vinculantes de ordem pública – e de estado de equilíbrio a ser alcançado e preservado por todos os agentes envolvidos, com um espectro totalizante. O Estatuto da Cidade trata da regulação do uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental (art. 1º, parágrafo único), em sintonia com as disposições constitucionais pertinentes. A citada lei federal prevê também a necessidade de adequar os objetivos do desenvolvimento urbano para privilegiar os investimentos propiciadores de bem-estar geral (art. 2 §, inciso X).


A política urbana deve ordenar e controlar o uso do solo, para fins de evitar a exposição da população a riscos de desastres e impedir a poluição e a degradação ambiental. Mas qual a efetividade do direito urbanístico frente a acidentes como os desastres de Mariana e Brumadinho? O rompimento da barragem de Mariana em 2015, um dos maiores desastres ambientais da história, gerou uma onda de lama que atingiu diversas cidades dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, como Santa Cruz do Escalvado, Governador Valadares, Regência, Linhares e Colatina.


O caso me lembra episódio descrito por Rachel Carson na obra Primavera Silenciosa, que ilustra o risco comum ao qual estão sujeitas as populações do campo e da cidade em situações de derramamento de substâncias tóxicas. A autora relata que em 15 de janeiro de 1961 no Rio Colorado, próximo à cidade de Austin, no estado americano do Texas, foram encontrados peixes mortos no lago Town. Nos seis dias subsequentes, a onda de substância venenosa responsável pela matança da vida lacustre desceu rio abaixo por 320 quilômetros, contaminando a água que abastecia diversas cidades e exterminando uma grande quantidade de peixes e outros seres vivos, até que as águas chegaram ao Golfo do México e foram lançadas no oceano.


O que dizer então do município de Paracatu em Minas Gerais, onde está atualmente instalada uma das maiores barragens de rejeitos do país? Além de conviverem com o temor frequente de rompimento das barragens, pesquisas recentes demonstram que o acúmulo de arsênio tem aumentado na região de Paracatu, assim como o número de pacientes com câncer tem crescido acima da média nacional e regional nos últimos anos[1].



Tragédias resultantes da precária interação entre zona residencial urbana e indústrias de alto risco não faltam para servir de exemplo. Indra Sinha retrata em seu livro Animal’s People o apocalipse instalado na cidade de Khaufpur, no norte da Índia, após a explosão da fábrica de pesticidas da Union Carbide India Limited, filial de uma multinacional americana. Na madruga do dia 3 de dezembro de 1984 mais de 500.000 pessoas foram expostas a isocianato de metila – substituto do DDT e utilizado em armas químicas – com a morte instantânea de mais de 3.000 pessoas. A cidade tinha uma população de 900.000 habitantes e sofre até hoje com as contaminações derivadas do acidente e pelo sentimento de injustiça pela não punição dos responsáveis.


É inegável a necessidade de atuação do Poder Público para assegurar o bem estar de seus cidadãos em face à sociedade de risco, com destaque para a busca do equilíbrio necessário entre desenvolvimento econômico e o dever estatal de assegurar cidades sustentáveis. Mas a construção de um modelo sustentável de sociedade e vida urbana impõe que todos os agentes envolvidos, inclusive os cidadãos, tenham uma conduta responsável quanto à utilização e preservação dos bens comuns naturais, como a água, para a presente e para as futuras gerações.


O direito coletivo à cidade sustentável deve ser alcançado dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social, para abranger o direito a um meio ambiente sadio, ao desenvolvimento, à preservação e uso sustentável dos recursos naturais e à participação popular no planejamento e gestão urbanos. Para o manejo dos bens comuns naturais e energéticos, da cidade e entorno rural, se torna imprescindível a construção de uma política pública urbanística responsável sobre a água e o meio ambiente, de modo a impedir a contaminação ou destruição indiscriminada das fontes geradoras desses bens e viabilizar o uso sustentável dos recursos naturais.

 

[1] UFMG. Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais. Paracatu – o maior envenenamento em massa do Brasil. Disponível em: http://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/noticias/paracatu-o-maior-envenenamento-em-massa-do-brasil/

 

Davi Beltrão de Rossiter Corrêa é Advogado público do Banco de Brasília e Associado do IBAP



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