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As fake news e os conceitos de verdade: um breve panorama filosófico

Atualizado: 5 de dez. de 2023

- Daniel Ferraz -


Ao retomarmos o momento das eleições presidenciais de 2018 em nosso país, poderíamos eleger as fake news como as palavras do ano: elas foram cooptadas não somente pelas mídias de massa convencionais (como é o caso das poderosas redes televisivas), mas também pelas redes sociais e, com isso, caíram na “boca do povo” de forma extremamente polarizada, ora como revolta daqueles que se sentiram ultrajados com a superficialidade das informações circuladas (“isso não é possível, deve ser fake News!”), ora como suporte para campanhas que, desastrosamente mal preparadas (porém com sede de poder), buscaram manipular uma massa de ignorantes e desinformados por meio das tais notícias falsas.


Duas questões se desdobram dessa discussão: A primeira aponta para o fato interessantíssimo de que fake news nem são, obviamente, palavras da língua portuguesa, porém foram praticamente inseridas “goela abaixo” por meio das mídias. Como temos a tradução fácil e instantânea dos termos (nem o Google translator “erraria”), utilizá-los na língua inglesa aponta para uma discussão global, qual seja, por meio da discussão sobre as fake news, podemos problematizar a influência descomunal e copiosa da digitalidade na vida (pós?) moderna. Em muitos contextos, a potencialidade de circulação virtual das tais fake news tem sido decisória em eleições nacionais mundo afora. A segunda questão, mais grave e perigosa, é a naturalização do termo, pois se existem notícias falsas, existem “notícias verdadeiras”. Nessa perspectiva, não deveríamos estar discutindo se uma notícia é falsa ou não; deveríamos, ao contrário, agravar a discussão mostrando que as notícias não são verdadeiras ou falsas, mas apenas uma versão da realidade; uma versão historicamente contextualizada, construída por alguém que possui interesses, identidades e subjetividade.


Daí a importância de discutirmos a questão da verdade, outra palavra que tem sido, dessa vez, cooptada pelo novo governo eleito (em especial, o novo presidente) como um discurso que se move na direção da homogeneidade, universalismo e consenso. Com esse movimento, exclui-se, portanto, a heterogeneidade, a diversidade e o necessário dissenso nas relações humanas. Entendemos, assim, como “a verdade” vem justificando os discursos e ações simbólica e fisicamente violentas em relação ao Outro, o diferente, a minoria (nesse bojo estão os LGBTQIA+, os indígenas, os educadores “doutrinadores”, entre tantos outros).


Por meio de perspectivas pós-estruturalistas da linguagem, aqui brevemente apresentadas por meio das perspectivas derridianas e foucaultianas, podemos facilmente descontruir o conceito da verdade unívoca e universal. Com Derrida, aprendemos, no jogo das diferenças, que a centralidade e univocidade do signo linguístico pode e deve ser abalada, uma vez que este mesmo signo nunca terá apenas um sentido, mas sim, muitos, múltiplos, a depender do contexto socio-histórico e do sujeito que o produziu. Assim é que a oposição binária verdade x mentira é questionada em termos derridianos. Parece gritante afirmar, por exemplo, que em tempos de tecnologização ubíqua nas sociedades contemporâneas, o que foi “fato” (verdade) algumas décadas atrás já não é mais com os avanços tecnológicos hoje em dia, porém, é preciso desconstruir esses sentidos em tempos de massificação midiática.


Com Foucault, entendemos que a verdade, ou o desejo dela, vem sendo produzido por meio de formações discursivas que, por meio do discurso, implementam, sistemicamente, suas verdades. Em sua proposta genealógica, Foucault (2003a, 2003b) analisa o crime, a disciplina, o poder, a loucura e a sexualidade com o intuito de escavar nos processos históricos as maneiras pelas quais os discursos construíram tais esferas sociais e de como, por meio da instituição de verdades, permitiram a ascensão e prestígio de determinadas áreas do conhecimento (FERRAZ, 2015), em detrimento de outras (como é o caso do desprestígio das ciências humanas em tempos recentes no Brasil). Desse modo, podemos compreender o ataque às humanidades, principalmente às áreas da Filosofia, Sociologia, História e Letras, uma vez que estas justamente questionam os discursos sobre “a verdade”, “a ideologia” e todas as visões de língua e linguagem. Por isso é doloroso afirmar que “a verdade” desejada nesse momento é aquela que advém das formações discursivas religiosas, neoconservadoras, neoliberais e tradicionalistas.


Até aqui, discuti algumas perspectivas filosóficas em relação ao conceito de verdade, que podem ser resumidas no quadro abaixo:


A terceira visão acima, da pós-crítica, pode nos ajudar a evitar a cilada dicotômica, buscando uma “terceira margem do rio”. No texto The Ethical Claims of il Pensiero Debole: Gianni Vattimo, pluralism and postmodern subjectivity, David Rose (2002) defende, com base nos pensamentos de Gianni Vattimo, as verdades enfraquecidas. O autor aponta para a urgência de percebermos que da “fraqueza” de nossa “própria verdade vem a pretensão de validade de outras verdades. Não se pode silenciar as outras vozes, porque elas também revelam uma perspectiva sobre a verdade e não se pode assumir conhecer a verdade dos outros sem primeiro ouvir as suas palavras, uma vez que a subjetividade permanece sempre opaca e inviolável”. E assim como Sousa Santos e tantos outros filósofos e sociólogos, chama a atenção para o reconhecimento de nossa própria ignorância. Nossas verdades até podem ser verdades em um determinado contexto, porém, conscientes de nossas limitações epistemológicas, elas são enfraquecidas; lindamente se enfraquecem na relação com o Outro.


Especificamente em relação à educação (também sendo inacreditavelmente atacada neste país), o educador que permite a coexistência de verdades ou a permanência de uma verdade enfraquecida, qual seja, válida para aquele contexto (e tem-se consciência de sua transitoriedade), permite que outros espaços sejam criados e discutidos em suas aulas e, ao permitir que essas verdades enfraquecidas aflorem, o professor pode incentivar processos de construção de sentidos e processos de ruptura de realidades pré-estabelecidas. Aos educadores cabe o discernimento e escolhas sobre quais cidadãos desejam formar (FERRAZ, 2015).


Por fim, penso que a discussão filosófica sobre fake news e seus conceitos imbuídos de verdade se torna premente em momentos de extrema polarização das ideias, dos discursos e das relações sociais em nosso país. Os sentimentos de frustração e angústia em relação a essa violenta polarização não podem nos furtar do debate e do desejo de um mundo melhor, em que as verdades sejam vistas como potencialidades para o consenso e o dissenso.

 

Daniel Ferraz é Pós-Doutor em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo. É docente no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo e também docente no Departamento de Letras Modernas e no Programa de Pós-Graduação de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Universidade de São Paulo.


Referências

  • FERRAZ, D. M. Educação crítica em língua inglesa: Neoliberalismo, globalização e novos letramentos. Curitiba: Editora CRV: 2015.

  • FOUCAULT, M. A história da sexualidade 1: a vontade de saber. Trad. ALBUQUERQUE, M. T. C. Rio de Janeiro: Graal, 2003ª.

  • FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2003b.

  • ROSE, D. E. The ethical claims of il pensiero debole: Gianni Vattimo, pluralism, and postmodern subjectivity. In: Angelaki, Journal of Theoretical Humanities. v. 7, n. 3. New York: Routledge, 2002.



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