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As longas distâncias amazônicas

Atualizado: 10 de jul. de 2019

- Márcio Souza -


Márcio Souza

Geralmente as pessoas acham que por ter nascido na Amazônia, mais precisamente em Manaus, sou uma pessoa com laços bastante estreitos com a natureza, com o mundo rural. Não é difícil de entender tal confusão, pois hoje a Amazônia é o grande sinônimo de natureza, embora natureza ameaçada. Mas ao contrário do que pensam os leitores, o fato de nascer em Manaus, cidade encravada no coração da maior floresta tropical do planeta e coração do subcontinente verde, não quer dizer nada; não sou exatamente íntimo da natureza e, muito menos, adepto das paisagens bucólicas, dos prados verdejantes com seus ruminantes a pastarem indiferentes no horizonte. Nascer em Manaus é na verdade uma desvantagem. É uma cidade que cresce em detrimento da floresta. E sempre esteve voltada para si mesma, protegida da ameaça do mundo selvagem que a cerca. A melhor explicação para tanto pavor do mundo natural talvez esteja em suas origens de forte militar português. Este foi o seu nascimento, um pequeno e medíocre forte de taipa, bem próximo à confluência dos rios Negro e Amazonas. O forte teve poucas oportunidades de entrar em ação, provavelmente os aguerridos povos indígenas da área considerassem desprezível gastar flechas e zarabatanas contra aqueles muros carcomidos pela chuva. O certo é que logo o forte desapareceu, se dissolveu em nossa alma, se incrustou no espírito dos amazonenses, e a cidade de Manaus foi se fazendo de costas para o rio e na defensiva contra a selva. Por isso, alguém pode nascer e morrer em Manaus, sem jamais tomar contato com a selva, com o rio. Você pode viver em Manaus e não saber absolutamente nada sobre a Amazônia, seus dilemas e o seu histórico de desencontros e choques culturais. Não me canso de me surpreender com a falta de interesse da população manauara pelas coisas da Amazônia. Creio haver um esforço para destacar a malha urbana de Manaus do destino geográfico que a insere na planície amazônica e a faz capital do Inferno Verde, quer os amazonenses queiram ou não. Eu mesmo só fui me dar conta da Amazônia quando estava em São Paulo, estudando ciências sociais na USP. De um lado, acossado pelos meus colegas que demonstravam um fascínio incompreensível para mim, e queriam saber como era a minha região, e de outro lado, instigado pelas primeiras noções de antropologia que me abriam os olhos para as culturas indígenas, dei-me conta do absurdo que era a minha formação. Eu estava com 22 e jamais experimentara passar alguns dias nos rios distantes, ou participara de excursão pelas redondezas ainda selvagens de Manaus.


Lembro da única e frustrante saída de Manaus para o interior do estado, minha estréia no mundo rural. Era 1959, eu estava com 13 anos e fazia o ginasial no Colégio Dom Bosco. Para meu desagrado, fomos convidados a passar as férias de julho na casa de um dos colegas, na cidade de Manacapuru. Toda a classe, bem entendido. Meu colega era filho de um comerciante daquela cidade situada no rio Solimões, e havia alugado e mobiliado uma casa inteira para nos abrigar. É claro que hesitei e meu desejo era dizer que não ia, mas sabem como é, a pressão social, a insistência dos colegas. Acabei aceitando e marchei para o porto com uma nuvem de maus presságios a me acompanhar.


Hoje é muito fácil chegar em Manacapuru, se você está em Manaus. Diria mesmo que é um belo passeio de carro, fazendo uma travessia de 40 minutos de ferry-boat e seguindo por 90 minutos por uma bela estrada. A cidade é pacata, conta com bons restaurantes que servem pratos regionais, especialmente as diversas receitas de peixes. Mas em 1959, era como sair num safári africano, como naqueles filmes de Hollywood. O barco de madeira que nos esperava no porto lembrava o “African Queen”, sem a Katherine Hepburn e Humphrey Bogart. E navegamos o dia inteiro para finalmente atracarmos num trapiche periclitante de madeira, ao cair do sol, frente a um horizonte de fachadas de casas comerciais decadentes. O cheiro de óleo queimado e de frutas podre era intenso, o calor nos deixara exausto e o barulho do motor do barco ameaçava continuar presente em nossos ouvidos, mesmo depois de desligado.


Vendo na distância do tempo, parece absurda a atitude que tomei, no dia seguinte à nossa chegada. Fomos recebidos regiamente pela família de meu colega, que nos brindou com um jantar magnífico e nos ofereceu acomodações confortáveis. A cidade era um aglomerado de casas, como constatei no dia seguinte, mas por todos os lados a natureza nos assaltava, como jamais acontecia em Manaus. Para começar, Manacapuru se debruçava sobre o rio Amazonas, com suas águas barrentas a carregar ilhas de capim. O rio era uma demonstração de majestade que eu ignorava, e me aterrorizava. Passamos a manhã jogando bola e tomando banho de igarapé, num recanto que lembrava o paraíso. Águas cristalinas que deixavam ver os milhares de peixes que nadavam curiosos em torno de nossas pernas. Em volta e a formar um dossel de cipós e lianas, a selva levanta-se soberana, trinta metros acima de nossas cabeças. Um bando de papagaios fazia algazarra nos buritizeiros e as garças nos ignoravam alvas e solenes, suas atenções voltadas para o movimento browniano dos peixes. O que se poderia quer de melhor?


Eu, no entanto, estava inquieto e insatisfeito. Para começar, levara quatro livros e já lera dois. Não havia biblioteca na cidade, nem jornal, nem rádio. Manacapuru vivia no século XIII, em plena Idade Média. E pior, antes de deixar Manaus vi anunciado no cine Avenida, meu cinema predileto, a estréia do filme de Louis Malle, “Ascensor para o Cadafalso”, com a minha adorada Jeane Moreau. E eu ia perder aquela estréia, pois em Manaus os filmes só eram exibidos um dia apenas, logo substituídos por outro.


Quando o sol começou a morrer, e me dei conta de que passaria trinta dias naquela paisagem bucólica, todos os dias nadando naquelas águas cristalinas, respirando aquele ar matinal puro e jogando bola naquela relva macia, mas sem Jeane Moreau, sem jornais e sem livros, entrei em pânico, Desesperado, arrumei minhas coisas e disparei para o trapiche. Não havia barcos de linha regular para Manaus e logo constatei que não tinha poder aquisitivo para comprar um lugar nos barcos particulares, que geralmente transportavam os produtos extrativos para a venda em Manaus. Logo a notícia de que um dos garotos de Manaus estava se debulhando em lágrimas, suplicando que o embarcassem de volta, chegou aos ouvidos de nosso anfitrião.


Expliquei ao pai de meu colega que estava tudo bem, que ele estava nos recebendo de forma magnífica, mas que eu tinha um encontro marcado em Manaus com a Jeanne Moreau e não podia faltar. Não sei se ele entendeu a minha ansiedade em deixar aquele pedaço de paraíso pelas agruras urbanas da capital. Para minha alegria ele me recomendou ao dono de um dos barcos, e por volta das três da manhã vislumbrei as luzes de Manaus no horizonte. Aquilo foi uma epifania, era como enxergar as luzes da própria civilização. Corri para casa e no dia seguinte, na sessão da 16 horas, lá estava eu na quarta fila do cinema Avenida, pronto para o meu encontro com a nouvelle-vague francesa que para mim valia muito mais que todos os encantos da natureza.


 

Márcio Souza é romancista, dramaturgo e ensaísta.


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