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Beijinho no ombro da solidariedade social

Atualizado: 5 de dez. de 2023

- Guilherme José Purvin de Figueiredo -


Há cinco anos (2014), o grande sucesso nas rádios e na internet era cantora Valesca Popozuda e seu funk Beijinho no ombro.


A abertura do videoclipe é um pastiche repleto de referências a blockbusters do cinema: o fundo musical, com timbres de orquestra de metais e coral feminino obtidos obviamente por teclado eletrônico, procura passar a ideia de que vamos ver um filme do tipo Senhor dos Anéis, Crônicas de Nárnia ou Game of Thrones. “Pardal Produções” e “Map Style” anunciam o clipe com letreiro ao estilo reportagem de casamento, à disposição dos usuários de programas de edição de vídeo em PC. A câmera se aproxima de um castelo cuja parte central é coberta por uma pirâmide de vidro ao estilo do saguão de entrada do Museu do Louvre. No meio da escuridão, misteriosos vultos de negro e vestes religiosas, com as cabeças cobertas, avançam solenemente em direção a uma mulher que se supõe ser a rainha de um reino medieval: Valesca Popozuda, com um casaco de pele preto. Os religiosos retiram suas vestes sacras, a música de abertura e a sequência cênica são interrompidas inesperadamente.


Tem início então a segunda parte do clipe: soam acordes em tom menor de um órgão de igreja, buscando realçar um clima solene e sombrio. A rainha Valesca Popozuda surge então do alto de uma escadaria, com uma fantasia carmim e repleta de detalhes dourados. Não veste manto real. Na verdade usa um shortinho combinando a parte de cima. Não há contrarregra na produção: ela se junta aos seus “súditos” e a fantasia real volta a ser o casaco de pele da primeira cena. Aos acordes do órgão acrescem-se sinos fúnebres e trombetas reverberantes. Só aqui começa a mensagem principal:


“Desejo a todas inimigas vida longa /

Pra que elas vej’ cada dia mais nossa vitória /

Bateu de frente é só tiro, porrada e bomba /

Aqui dois papos não se cria e nem faz história”.


Em tradução livre, a clássica frase de adesivo no para-brisa de Fiat 147 ("Vida longa aos meus inimigos para que aplaudam de pé a minha vitória") é radicalizada por Valesca: vida longa, sim, mas para me admirar, pois não há lugar para rivais.


“Aqui dois papos não se cria e nem faz história”, isto é, não há relação de igualdade, apenas um ascende ao posto de “rainha”. E qualquer ameaça ao poder resultará em “tiro, porrada e bomba”. Trata-se, claramente, de reprodução no plano da sexualidade e do sucesso financeiro da luta do narcotráfico pelos espaços territoriais. A insubordinação resulta em execução sumária.


Passamos afinal ao funk propriamente dito.


Já com uma saia vermelha, Valesca Popozuda canta com raiva, os olhos para a câmera, a sua rival invejosa. A música pseudo-religiosa é abandonada, os sacerdotes agora estão todos de short preto e a cena transforma-se numa espécie de suruba sadomasoquista.


Vem a segunda quadrinha: “ ‘credito em Deus e faço ele de escudo”. A rainha tem um trunfo moral sobre as inimigas: acredita em Deus e o faz de escudo. A referência religiosa apresenta componentes sincréticos. Não é, evidentemente, o Deus descrito pela Igreja Católica contemporânea. A invocação está mais próxima das religiões de matriz africana. O Deus que é feito de escudo está mais para o Amuleto de Ogum, filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos em 1974. Deus-escudo é corpo-fechado.


A referência religiosa, porém, é cortada por uma ofensa rude à câmera-invejosa, que é chamada de cadela: “Late mais alto que daqui eu não te escuto” – mais um dito popular transformado (“Os cães ladram e a caravana passa”). A referência à condição financeiramente superior da rainha vem nas duas estrofes seguintes:


“Do camarote quase não dá pra te ver /

Tá rachando a cara, tá querendo aparecer”.


Na festa, a rainha está no camarote, mas seus olhos são voltados para outras pessoas iguais a ela e que agora sentem inveja de sua ascensão social.


O clipe ainda tem um falcão (simbolizando nobreza) e um tigre (simbolizando poder e sensualidade). Popozuda prossegue em sua provocação para as invejosas:


“Não sou covarde, já tô pronta pro combate /

Keep Calm e deixa de recalque /

O meu sensor de periguete explodiu /

Pega sua inveja e vai pra…”.


Os dançarinos tapam a boca da cantora para impedir o óbvio, que será cantado nos bailes a todos os pulmões, num exercício de catarse. O “vai pra puta que o pariu” censurado, porém, é substituído por uma agressão muito mais contundente: “Rala, sua mandada”. O que, em bom português, significa “Trabalha, escrava” – um fato sociológico que já havia sido magnificamente sido desenvolvido por Machado de Assis no episódio relativo ao escravo Prudêncio, em Memórias Póstumas de Brás Cubas: ao ascender socialmente, o empresário bem sucedido sente um grande prazer em reproduzir as humilhações que sofreu quando era subordinado, “mandado”.


Ao final, o refrão destinado a marcar a coreografia e torna-la um grande sucesso:


“Beijinho no ombro pro recalque passar longe /

Beijinho no ombro só pras invejosas de plantão /

Beijinho no ombro só quem fecha com o bonde /

Beijinho no ombro só quem tem disposição”.


É claro que o refrão não se esforça muito em manter coerência, nivelando “invejosas de plantão” com “quem fecha com o bonde” (ou seja, quem é fiel ao seu grupo) e tem disposição. O importante aqui é o “beijinho no ombro”.


A canção versa basicamente sobre um tipo de superstição que é comum em todas as classes sociais: o medo de que um olhar de cobiça possa destruir o que você conquistou. Isso vale para dinheiro e até para um simples vasinho de flores que murchou depois que alguém veio visita-lo. Nas casas de umbanda, existe um certo "defumador olho gordo", destinado a afugentar pessoas invejosas. Outras pessoas usam vaso de sete ervas ou colocam um ramo de arruda atrás da orelha. Valesca Popozuda prefere mandar um beijinho no ombro.


No mesmo ano de 2014, o funk de Valesca Popozuda foi apropriado pela elite paulista. Em divertida apresentação do Coral USP XI de Agosto, com acompanhamento percussivo da “Bateria de Agravo de Instrumento da São Francisco”, os calouros foram recebidos com essa canção no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP, cujo cenário é curiosamente semelhante com o do clipe original. Não houve, aparentemente, intenção de parodiar o funk: a mensagem de Valesca Popozuda, ao que parece, expressava os sentimentos dos universitários, que mandavam beijinho no ombro a todos os ex-colegas de colégio e cursinho que não tiveram condições de ingressar na melhor e mais disputada faculdade de direito do país. Não dá pra saber se os aplausos são demonstração explícita do humor e da irreverência que já caracterizou a Academia do Largo São Francisco ou são direcionados à mensagem transmitida naquele funk.


"Beijinho no ombro" é o hino do individualismo e da meritocracia. Representa com muita adequação o Brasil da Década de 2010 - a década do retrocesso social, da decadência cultural e da barbárie política. Vem bem a calhar neste momento em que políticos, empresários e meios de comunicação se empenham em defender uma perversa reforma previdenciária, em negação ao princípio da solidariedade social.

 

Guilherme José Purvin de Figueiredo é advogado/SP, doutor em Direito pela USP.



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