-ELIZABETH HARKOT DE LA TAILLE-
Não leia. Estou avisando, não leia.
Veja, não vou fazer você rir, nem enriquecer ou se sentir melhor ou por cima dos outros. Tampouco ajudar a resolver algum problema seu ou de alguém mais. Se quer se encontrar com Deus, não sou eu que sua alma inquieta quer.
Na verdade, há meses, estranho muito e muito me estranho.
Por exemplo, peguei horror de algumas letras maiúsculas. Não sei bem o que aconteceu. Ainda que me envergonhe, só consigo escrever “brasil”. Não é o único caso. Apenas não dá, em várias situações, não consigo fazer como diz a gramática. Em outras, não sou capaz nem mesmo de redigir um e outro nome.
Acho que isso começou com os atentados à semântica, em minha lembrança, inaugurados no uso maciço de “controverso”, nos jornais e televisão, a fim de qualificar o abominável. Controvérsia, diz Houaiss, é “discussão, disputa, polêmica referente a ação, proposta ou questão sobre a qual muitos divergem”. Uma controvérsia ou polêmica diz respeito a diferenças de opinião, a discordâncias.
Muito distinto e distante é o “abominável”. Parente do deplorável e do execrável, diz respeito a algo inaceitável, digno de aversão exacerbada. A kilômetros das questões de opinião, o abominável agride os valores que norteiam as pessoas.
Apesar de um oceano de distância entre uma e outra palavra, os meios de comunicação decidiram qualificar de “controversos” falas e atos abomináveis. O elogio à tortura, a ridicularização do estupro, o desprezo aos velhos, enfermos e pobres, a adulação dos injustos, a celebração dos brutos... tudo isso, desde então, tornado mera questão de opinião.
Talvez tenha sido aí que a porteira das ofensas à língua e à pátria se escancarou e pôde se instalar um desgoverno adepto da novilíngua orwelliana. Assim, gere a agricultura certa musa do veneno, responde por assuntos exteriores um isolacionista, manda no meio ambiente um condenado por crime contra o próprio meio ambiente, impera sobre a economia um banqueiro, rege a educação um desataviado de ortografia reprovável, domina a justiça e a segurança..., enfim, etc. Ao mesmo tempo, desmonte, demolição, destruição viraram reforma – e assim Assad segue, tranquilamente, reformando a Síria, do mesmo modo como no brasil persistem na reforma da previdência.
A novilíngua tupiniquim é mais ávida que sua original. É tão ávida que recentemente penetrou a matemática. De organizada em três poderes, a república federativa do brasil assiste ao surgimento de uma reforma algébrica, na qual X=1, quando 1(poder executivo)+1(poder legislativo)+1(poder judiciário)=X. Parece confusão, e é. Con+fusão = fusão conjunta, mais ou menos. Os três poderes tornando-se um, num arremedo farsesco da Santíssima Trindade. Está muito mais para o mito (ai, que palavra!) do Ouruborus, a cobra que se come pelo próprio rabo. Nos meios exotéricos, sugere evolução ou fertilidade. Cá no planeta Terra, porém, a cobra que começa a se comer pelo rabo acaba suicida. Como uns dizem que mitos governam, quem sabe o futuro da cobra-país será outro que o da confusão suicida.
Estranho muito tudo isso e me estranho. As manhãs agora são penosas, é árduo o reencontro com pessoas antes queridas, os dias tornaram-se sequências de tarefas até o chegar da noite e o poder dormir.
Às vezes, sonho. Um mar de plástico agitando-se. E la nave va!
Apesar de quando acordada, tenho comigo que a semântica vai se recuperar. A língua é viva e sempre encontra meios de dizer o que quer e o poder de subjugar seus traidores.
“Você sabia que rinocerontes fêmeas dão um ótimo leite?”
Este artigo também foi publicado no volume 25 da Revista de Direito e Política - Ano XVII, de junho de 2019.
Elizabeth Harkot de la Taille, Doutora em Semiótica e Lingüística Geral pela USP, é Professora Associada Livre Docente da Universidade de São Paulo nas áreas da Língua Inglesa e Linguística.
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