(Sobre a entrevista concedida à imprensa por Lula na prisão em 26 de abril de 2019)
FLO MENEZES
Fiquei muito emocionado ao assistir à entrevista do Lula! Trazendo-me de volta a profunda tristeza daquele dia 1º de março (se é que pode-se chamar de “dia” – este tão belo nome – a jornada na qual morre uma criança), chorei de novo quando ele foi subitamente às lágrimas falando da morte de seu pequeno neto ao início de sua fala e, depois de quase 2 horas de entrevista, chorei ao seu término...
É emocionante ver a força de Lula! E, em meio a toda a sua elasticidade política, sua inegável autenticidade.
Uma grande pena tirarmos a lição de que a via reformista acabe nisso, porque seria, claro, muito mais fácil o caminho para uma melhora substancial da vida da imensa maioria dos brasileiros (ou seja, mudar o Brasil rumo ao Socialismo e à justiça social) a via da conciliação, a via eleitoral que nos oferece a democracia burguesa... Haveria menos mortes! (... Será???) Mas diante da índole humana, “что делать?” (“o que fazer?”) Como erradicar a maldade? Uma Revolução, do tipo russo, chinês ou cubano, é meu sonho, mas talvez jamais ocorra num país com a história que tem o Brasil, tendo sido usado sempre como moeda de troca dos grandes interesses imperialistas, e isto mesmo antes de o Imperialismo ter sido definido enquanto tal.
O individualismo pequeno-burguês prevalece no Brasil. Não temos consciência cívica e vemos ricos e pobres arremessarem pelos vidros de seus carros latas vazias de refrigerante ou cerveja a rolarem pelo asfalto. Aí, as classes se nivelam. Compactuam-se no que destroem o coletivo. O espaço público não é o espaço da coletividade; interessa ao espírito individualista apenas o espaço no qual pode fincar seus pés e dele, apropriar-se.
"Lula é de uma enorme inteligência, e continua com seu inabalável carisma, que cativa de conservadores a ecologistas, de trotskistas a um Fidel..."
Por isso vivemos, ainda, a reboque da história. O que deveria ser causalidade sofre perpétua permutação e verte-se continuamente, entre nós, em casualidade. Faltam determinismo e direção nas ações desagregadas. Para uma Revolução, é preciso que um povo tenha a consciência da noção do trágico, mas parece que o Brasil sempre viveu tragédias sem que o povo as tivesse protagonizado.
Lula é de uma enorme inteligência, e continua com seu inabalável carisma, que cativa de conservadores a ecologistas, de trotskistas a um Fidel, mas toda a sua inteligência comportou o risco da ilusão (e nisso, sua inteligência se desbota) de que seu reformismo poderia blindar os grandes retrocessos. E ele estava errado. E estava e está muito errado ao ele mesmo blindar, na base de um discurso conciliatório, de George W. Bush a Muammar Gaddafi (relatando conversas e negociações conciliadoras com tais personalidades), indo sobretudo contra a indignação de Fidel quando este – aí, sim, um gigante Revolucionário – se opôs a Lula por ter chamado a compor a “comissão” de negociação sobre a Venezuela membros do governo norte-americano, como relata o próprio Lula na entrevista.
Lula é também um grande maroto! Sabe se esquivar diante dos fatos óbvios e mais que reprováveis (ao menos do prisma da ética marxista), e com sua habilidade consegue tecer um discurso “progressista” até mesmo quando “desconversa” sobre as propinas de Odebrecht e cia. que escorregaram na mão de poderosos governantes através de um “imperialismo brasileiro” na América Latina e na África.
Lula é um habilidoso conciliador. Mas qual o lugar da conciliação? Quais seus limites??? Não necessitaríamos de um programa maximalista??? O ser humano, social, não seria capaz desse salto??? Quantas gerações de miseráveis e desfavorecidos terão de pagar a conta pela lentidão dos avanços sociais a passos de tartaruga, e para os quais – e isto nos escancara o desmonte sistemático em curso, empreendido pelo neofascismo – não se tem qualquer garantia???
Sua habilidade conciliatória não impediu que, hoje, encontre-se encarcerado. Seu programa reformista e populista resvalou na ferida aberta das oligarquias, mas se este constituiu importante ingrediente, não foi o único, e tampouco o mais decisivo na farsa jurídica que o jogou na prisão, pois jamais representou qualquer ameaça sistêmica: foi sobretudo a própria estratégia da conciliação, com gangsters e canalhas, que deu margens ao retrocesso preconceituoso que lhe tolhe, hoje, a liberdade.
Sempre estarei eu, de meu modesto lugar como compositor da Música Radical, lutando à esquerda de onde se colocar o discurso: com pessoas conservadoras com as quais ainda tenho que conversar (pois as “negociações” também ocorrem no nível trivial das vidas humanas), defendo Lula; entre nós, da esquerda, não deixarei de acusá-lo por seu reformismo e, sem deixar de defender com unhas e dentes os avanços conquistados pelos governos reformistas, denunciar sua lentidão e sua estratégia comprometedoras!
Um último aspecto: seu ego descomunal! Mas isso não levo tanto em conta, pois como artista o meu não é menor que o dele, e temos o direito de termos o ego que quisermos ter, DESDE QUE isso não mine o “ego” dos outros! O artista que não assumir seu ego é um hipócrita, ou está no lugar errado. Mas em arte, esse espaço é mais democrático, ainda que, ao mesmo tempo, cruel: é a qualidade do trabalho que se impõe, e tendo qualidade, todo trabalho terá lugar ao sol; não tendo, o trabalho medíocre, mesmo quando temporariamente acobertado ou estimulado pela rasa indústria cultural capitalista, logo esfacela-se e vira pó!
Em política, entretanto, há necessariamente lideranças, e é sintomático o fato de Lula evocar todas as siglas de centro e centro-esquerda, mas deliberadamente ocultar a do partido que se perfila como o mais bem situado a assumir, hoje, o protagonismo das esquerdas outrora desempenhado pelo PT nos idos dos anos 1980: parece-me um ato desonesto Lula sequer ter citado o PSOL (fez questão de não mencionar a sigla quando falou de Boulos!), enquanto minimizava a figura e o papel de Haddad, que lhe serviu de fantoche até aqui, e pelo qual demonstrou um desmascarado desdém durante a entrevista. Lamentável!
De toda forma, a bandeira “Lula Livre” coloca-se como UMA dentre as muitas que devem ser encampadas pelas esquerdas brasileiras! E que, em meio a uma Frente Única contra o neofascismo – em curso em boa parte dos países, mas que se apresenta no Brasil, como haveria de ser no país de Macunaíma, em sua forma mais boçal, tosca e inculta –, nós possamos, sempre dentro de um prisma internacionalista, superar o Lulismo e consigamos, quem sabe, radicalizar um processo de profundas e irreversíveis mudanças sociais no Brasil e no mundo!
Flo Menezes (SP, 1962) é compositor. Um dos principais expoentes da vanguarda musical internacional, é autor de 13 livros e de cerca de 100 obras musicais em todos os gêneros da composição, foi líder trotskista secundarista e, em 1980, um dos primeiros 3 mil filiados do PT em São Paulo:
Estimado Flo, críticas muito importantes, mas é necessário reafirmar o quanto seria impossível a eleição de um governo mais à esquerda do que realizou Lula num país tão fortemente dominado por oligarquias tão atrasadas. Estava certo José de Souza Martins quando analisa a crise do Governo Collor e a causa principal de seu impeachment ser a ausência de articulação com a tacanha oligarquia agrária brasileira. O mesmo teria acontecido com Lula de imediato. Parabéns pela coragem de sua posição!
Flo, quanta sensibilidade e senso crítico. Bela reação à entrevista: profunda e ampla.
Ao comentar a entrevista da maior liderança política atual do país, preso político por circunstâncias escusas, tece crítica ácida ao reformismo. Como dito, é uma pena ser o reformismo o máximo de avanço social que o Brasil consegue atingir.