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Fundamentos históricos da fragilização do Direito do Trabalho, Tributário e Ambiental

Atualizado: há 3 dias

- Guilherme José Purvin de Figueiredo -

Há em comum na doutrina de Adam Smith e Ricardo, de Marx e Engels, de Max Weber ou de John M.Keynes o reconhecimento de que a base da produção econômica capitalista é o tripé terra, trabalho e capital. Vale a pena refletir sobre a disciplina destes três elementos pelo Direito Brasileiro contemporâneo. 

Em 1929, com as feridas da 1ª Guerra Mundial ainda abertas, ocorre a quebra da bolsa de valores em Nova York e, na Rússia, a ascensão de J. Stalin e a expulsão de Leon Trotsky. Nessa mesma década, os "camicie nere" (camisas negras), milícias comandadas por Benito Mussolini, impunham o terror na Itália, perseguindo os comunistas. Em 1933, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores da Alemanha torna-se o partido único da Alemanha e as funções legislativas são delegadas ao poder executivo, comandado por Adolf Hitler. Em 1939 eclode a 2ª Guerra Mundial, que só terá fim em 1945. De 1945 até 1986, o grande trunfo retórico do mundo livre capitalista em seu embate contra o socialismo real foi o compromisso com os valores democráticos, os direitos humanos, a liberdade de expressão, legado da 2ª Guerra Mundial pela maior economia do mundo, que havia derrubado o Nazi-Fascismo e financiado o reerguimento da Europa.

Trabalho

Como havia uma incômoda segunda força política igualmente responsável pela derrota dos países do Eixo (Japão, Itália e Alemanha), os Estados do mundo ocidental precisavam fazer concessões no plano econômico aos trabalhadores, para evitar situações de completo descalabro que pudessem ser exploradas pelos países socialistas como prova da injustiça social no capitalismo.

Assim, convenções da OIT eram celebradas e respeitadas como piso mínimo nas nações civilizadas. E, em países como Suécia, Noruega e Islândia, a social democracia apontava para possibilidade de justiça social acompanhada de liberdade no mundo capitalista, em oposição ao obscuro mundo soviético do Arquipélago Gulag.

No caso do Brasil, os trabalhadores, isto é, a imensa maioria do povo, nunca dispuseram de uma polícia para defender suas vidas e seus poucos bens. De igual forma, jamais contaram com representantes no congresso em número suficiente para defender seus interesses trabalhistas e previdenciários. Por um incidente de percurso histórico, essa classe foi lembrada por Getúlio Vargas, que pensava também em defender o patrimônio cultural (vide Dec.-Lei 25/1937) e natural (o primeiro Código Florestal é de 1934), aqui incluídas as riquezas de seu subsolo (criação da Petrobrás).

Na verdade, os trabalhadores continuavam recebendo tratamento de escravos por parte da elite econômica brasileira. Sem muitos modelos internacionais para seguir à sua época e sem a menor intenção de causar qualquer estremecimento em sua política de relações exteriores com os EUA, Getúlio optou pelo que parecia menos subversivo aos olhos da época: o modelo da Carta del Lavoro de Mussolini serviu de inspiração para a Consolidação das Leis do Trabalho, editada em 1943.

A CLT é até hoje a mais importante base infraconstitucional de todo o Direito do Trabalho brasileiro. Este ramo do Direito floresceu, portanto, no ambiente da chamada guerra fria, que durou de 1945 até 1989 (queda do Muro de Berlim) ou, mais explicitamente, 1991, quando ocorre a extinção da União Soviética.

Naquele momento, aqueles que haviam se acostumado a tomar conta de nossa biodiversidade na base do ferro e do fogo e a utilizar o trabalho forçado do nativo e do africano para promover a expansão da agricultura, o fim do "segundo mundo" já permitia vislumbrar um caminho muito menos cansativo para a promoção do capital do que aquele proposto pela cartilha humanista. As grandes corporações multinacionais gradativamente foram perdendo todos os seus freios e mostrando sua verdadeira face. Se as nações não precisavam mais provar a ninguém que o capitalismo era muito melhor do que o pesadelo das ditaduras soviética, chinesa, cubana ou albanesa, por que pensar em estado de bem estar social?

A Constituição Brasileira de 1988 foi resultado de uma luta contra mais de duas décadas de ditadura militar. No momento de sua promulgação, ainda se acreditava na possibilidade de construção de uma democracia liberal capitalista com toques de social democracia. Havia ali um sonho de refundação de um país colonizado por bandidos degredados de Portugal, latifundiários e escravocratas que nunca perdoaram a Princesa Isabel e que duvidavam que Machado de Assis, Gonçalves Dias ou Lima Barreto fossem negros. Ela era quase que uma cartilha buscando civilidade junto a uma horda de senhores feudais que nunca compreenderam que o respeito aos valores sociais do trabalho não é incompatível com a livre iniciativa.

Nos tempos atuais, o texto do art. 170 talvez possa ser confundido com o programa de governo de algum partido político de extrema-esquerda:

“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte”.

Em 1988, porém, estes princípios eram considerados inteiramente congruentes com o modelo capitalista.

Não levou muito tempo para iniciar-se o processo de concentração do capital nas mãos de pouquíssimos. Começamos pela flexibilização do Direito do Trabalho, promovida com muito empenho por grandes juslaboralistas, como os cultos Professores Octávio Bueno Magano e Amauri Mascaro Nascimento, do Largo de São Francisco, que para tanto promoviam magníficos Congressos Internacionais de Direito Individual, Coletivo e Processual do Trabalho em São Paulo, oferecendo as bases teóricas para a implementação de uma nova ideologia na doutrina do Direito Brasileiro do Trabalho. Era grande o número de colegas entusiasmados com a novidade neoliberal e que não faziam qualquer cerimônia para atirarem os livros de Américo Plá Rodrigues, Cesarino Junior e Evaristo de Moraes na fogueira sacrificial em louvor do novo Direito Empresarial das Relações de Trabalho.

Na década de 1990 e na seguinte, houve um significativo número de pessoas que se dispuseram a emprestar seus nomes para fins de legitimação de uma doutrina totalmente divorciada dos princípios que haviam norteado a constituição da Organização Internacional do Trabalho. Nesse sentido, aderiram irrestritamente ao discurso da modernização, invocando ainda por cima o cínico argumento de que era preciso “acabar com o ranço do fascismo” presente na CLT.

Sem dúvida, era preciso implantar no Brasil o pluralismo sindical, tal como previsto na Convenção n. 87 da OIT e, nesse aspecto, a Constituição de 1988 não havia avançado em relação aos tempos de Vargas, mantendo a unicidade sindical, responsável pelo fomento de sindicatos pelegos, que não precisavam lutar por melhores condições de trabalho para seus representados, já que não tinha concorrentes.

Algo de novo, porém, estava surgindo nesse contexto de unicidade sindical: centrais sindicais começavam a romper com o confortável imobilismo dos sindicatos que, alimentados pela contribuição sindical anual compulsória, não faziam nenhum esforço para angariar novos membros e partir para reivindicações mais ousadas em dissídios coletivos.

Com o advento de um novo sindicalismo, forte e combativo, a cláusula da unicidade sindical perdeu o maior atrativo que poderia oferecer para o empresariado: a despeito do esfacelamento do mundo socialista, sindicatos que havia poupado para sair bonito na foto da justiça social, saíram de seu controle. Por um mecanismo jurídico que ele mesmo havia implantado - o Direito Coletivo do Trabalho ou Direito Sindical, o capital estava sendo impedido de atingir seu escopo, isto é, a sua própria ditadura.


Capital

O capital, ao contrário do trabalho ou da terra, jamais necessitou de um curador para defesa de seus interesses, por um simples motivo: ele é que cria um Exército, que implanta um Estado e que elabora um Direito para garantir sua reprodução. A graduação da força das instituições estatais, assim, varia de acordo com as exigências impostas pelo mercado. Num plano geral, o capital está muito bem, embora aos olhos do povo, a miséria e o desemprego pareçam demonstrar o oposto. Ocorre, simplesmente, que ele está neste momento mais concentrado do que nunca nas mãos de poucos. Para auxiliá-lo a obnubilar essa aparente contradição, filósofos de banca de jornal ou garotos-propaganda ideológicos moldam os discursos, de modo tão bizarro e bem sucedido que uma federação das indústrias consegue criar instantaneamente uma legião de adoradores de patos (!!). Na era da pós-verdade, essa vem sendo a contribuição dos meios de comunicação à história do Brasil.

Poder-se-ia, porém, argumentar no sentido de que nem tudo é um mar de rosas para o capital. Afinal, existe um tal de Direito Tributário, que busca corrigir distorções econômicas e injustiças sociais gritantes. Se isso ocorre episodicamente, é por conta de certos Procuradores do Estado, do Município e da Fazenda Nacional que não entenderam ainda que os tempos estão mudados. Esse Direito Tributário não é pra valer - e, em São Paulo, a demonstração cabal disso foram os anos de desmonte das procuradorias fiscais em benefício da área consultiva das secretarias de estado. Assim, em 2018, concentrar esforços na promoção da execução de tributos de grandes devedores da Fazenda seria considerado um anacronismo. Demonstração da farsa da isonomia tributária é a falta completa de interesse do Poder Judiciário em instituir Varas de Execução Fiscal ou Varas Ambientais e seu grande empenho em criar "Varas Especiais e de Conflitos Relacionados à Arbitragem" e "Varas de Falências e Recuperações Judiciais" (Vide notícia publicada no Site do TJSP em 5-12-2017). E, em segunda instância, enquanto a Câmara Especial do Meio Ambiente continua há mais de uma década relegada à condição de "passatempo" a ser acumulado por seus integrantes com outras Câmaras supostamente importantes, duas poderosas Câmaras Reservadas de Direito Empresarial funcionam no TJSP, onde seus participantes dedicam-se com exclusividade à defesa do interesse, como o nome diz, empresarial (cf. aquiFica o alerta aos senhores advogados públicos: ou vocês se adaptam à lex mercatoria ou não haverá mais nenhum concurso público. Direito Tributário deve se resumir ao Imposto de Renda sobre Pessoa Física, diretamente incidente na folha de pagamento da classe média. Isto basta.


Terra

Resta falar sobre a terra, terceiro elemento constitutivo do processo de produção econômica no sistema capitalista. Para a sua defesa, existe hoje tão somente o movimento ambientalista. Sem sindicato e sem fonte de recursos financeiros para a defesa de sua causa, o ambientalismo vale-se de instrumentos de luta semelhantes aos do movimento feminista na defesa da igualdade de gênero ou do movimento afro na defesa da igualdade racial - a conscientização individual e a militância voluntária de ONGs.

O Direito Ambiental, porém, caminha a passos largos o mesmo caminho do Direito do Trabalho. O mesmo Supremo Tribunal Federal que ontem considerou válida a terceirização genérica do trabalho também sacramentou o retrocesso ambiental consubstanciado no Código Florestal de 2012. O diagnóstico para o Direito Ambiental é idêntico ao do Direito do Trabalho: ele incomoda o capitalismo predatório. Nesse ponto, aliás, em respeito à verdade histórica brasileira, é preciso reconhecer: o Direito Ambiental ainda teve a capacidade de unir contra si praticamente todos os segmentos da vida política do país, não só a empresarial, mas também os partidos que mais eficazmente defendiam os direitos dos trabalhadores.

Chegamos ao momento atual e, sem conhecimento mínimo de história do Brasil e do mundo, torna-se impossível debater a conjuntura política nacional a partir do início do segundo mandato de Dilma Roussef. Para aqueles que não conseguem relacionar fatos como extinção da contribuição sindical e concomitante manutenção da unicidade sindical ou a decisão tomada no dia 30.08.2018, pelo Supremo Tribunal Federal, em favor da terceirização ampla geral e irrestrita, os esforços de argumentação seriam inúteis, já que não cabem numa única frase de efeito.

Os deputados federais e senadores que decidiram implantar o parlamentarismo sem emendar a Constituição e que encerraram antecipadamente o mandato da primeira mulher presidente do Brasil, não precisaram inventar nenhum enriquecimento ilícito dela. Bastou o servil socorro de figuras do mundo jurídico. A teoria do domínio de fato do conhecimento acerca de meras irregularidades contábeis (convalidadas, aliás, também pelo seu então vice-presidente) chegou ao Congresso Nacional pelas mãos de certa figura do submundo jurídico do Tribunal de Contas da União cujo nome hoje já se encontra relegado ao completo esquecimento. Uma professora de direito penal propôs o impeachment, com uma retórica de assustar exorcistas e pastores do "Templo Quarteto Familiar Gracioso e Tenro” ou da "Igreja Evangélica Pentecostal O Cuspe de Cristo" (*). Uma cidade bonitinha e ordeira, que jamais esteve no centro das atenções do país (salvo, talvez, graças à ousadia urbanística de Jaime Lerner ou, pela mítica presença do grande contista Dalton Trevisan, o "Vampiro de Curitiba"), tornou-se a capital política da destruição do Direito do Trabalho. Isso graças a dois ou três funcionários públicos federais que, sem maior apreço ao Direito que aprendemos na faculdade, colocaram na prisão um ex-sindicalista que teve papel decisivo na história do Direito do Trabalho.

Logicamente, se em nada beneficiaram ao Direito Ambiental os quatorze anos de governo PT/PC do B, não seria o impeachment de Dilma Roussef que o beneficiaria, muito pelo contrário. Na verdade, agora o quadro é muito mais grave, pois aqueles que se sentiam economicamente pressionados pelo trabalho, agora conseguem dinamitar todos os entraves ambientais criados ao longo da década de 1990, ainda sob o impulso do processo de redemocratização nacional.

Não por outro motivo, no Brasil dos bacharéis em Direito sempre dispostos a adequar o discurso jurídico de acordo com as exigências do capital, com a queda dos representantes do trabalho, o inimigo n. 1 não é mais o velho guerrilheiro comunista e sim aquele que defende os povos ribeirinhos, a fauna e a flora do Rio Doce, os índios Yanomami, as populações atingidas por barragens, as vítimas da contaminação pelo mercúrio dos garimpos. O Brasil foi o país com o maior número de ambientalistas assassinados no ano de 2017 em todo o mundo (cf. Época Negócios ). Enquanto o Capital cai no samba em Brasília, quem dança é a Terra e o Trabalho.

•••


(*) Nenhum nome aqui foi inventado: estas igrejas estão condignamente representadas no Congresso Nacional e todas são agraciadas com uma isenção tributária que as transforma num negócio muito mais vantajoso do que qualquer investimento em Educação, Saúde Pública, Meio Ambiente ou Segurança).


 

Guilherme José Purvin de Figueiredo é advogado e escritor.

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